O enredo da cabanagem

Três dias antes da Assembleia Legislativa do Pará, a Câmara dos Deputados realizou, hoje, sessão solene para lembrar os 180 anos da cabanagem, que se completaram no dia 7 de janeiro, mais de oito meses atrás, portanto. A iniciativa, embora tardia e isolada, é salutar, realizada por proposta do deputado federal paraense Arnaldo Jordy. Pelo menos registra a data no parlamento federal, em Brasília, embora a audiência à sessão tenha sido mínima e a resistência ao tratamento ao fato histórico pela historiografia e o poder nacional persista quase intacta.

A despeito do esforço de divulgação, mesmo a nota à imprensa da assessoria da sessão, que reproduzo a seguir, contém erros ou omissões que precisam ser corrigidos.

A nota não é precisa na data dos 180 anos, situando vagamente a cabanagem “na década de 1830”. Só detalha mais quando se refere à segunda vaga da revolta, em agosto de 1835. Seria para aproximar mais a história da lembrança que dela teve tardiamente a sessão da Câmara?

Não é verdade que os cabanos criaram um governo republicano. Embora o movimento tenha colocado três dos seus integrantes na presidência da província, eles não executaram um programa de governo. A cabanagem nunca teve um. Foi uma reação aos desmandos do poder central, à persistência do domínio colonial português e às condições sociais de vida da população pobre ou segregada.

A nota podia ter usado um historiador local para citação, ao invés de repetir o trecho de Caio Prado Júnior usado ad nauseam, apesar da sua validade. Ou a melhor frase já escrita sobre a cabanagem, de autoria do alemão Heinrich Handelman, que nunca esteve em Belém, no Pará ou no Brasil: o movimento dos que não têm contra os que têm.

Os tucanos estão abusando da correlação da cabanagem com a situação atual. Repetem a deturpação história comum mais à esquerda deles, no velho vício de tomar o passado pelo presente, abstraindo a ação do tempo. E deseducar através da retórica vazia.

Também não é verdade que o espírito da cabanagem persista hoje entre os paraenses. A cabanagem virou concreto e sambódromo (ruim) em Belém do Pará dos nossos dias de alienação, omissão e oportunismo.

Segue-se o trecho de maior interesse do press release.

A revolta dos Cabanos ou Cabanagem foi um movimento popular ocorrido na Província do Grão-Pará, na década de 1830. Insuflados pela recente proclamada independência do Brasil e na esperança de dias melhores, sem escravidão e com mais direitos políticos, negros, índios, caboclos e fazendeiros da província pegaram em armas e enfrentaram o então governo central do Brasil para valerem seus direitos.

“Foi o mais notável movimento popular do Brasil, o único em que as camadas pobres da população conseguiram ocupar o poder de toda uma província com certa estabilidade”, disse o historiador Caio Prado Júnior. Em agosto de 1835, os cabanos voltaram a ocupar Belém e criaram um governo republicano, desligado do restante do Brasil. Ao cabo de cinco anos de guerrilhas, mais de 30% da população paraense – estimada na época em torno de cem mil habitantes – foi dizimada.

O procurador-geral do estado e chefe da Representação do Governo do Pará no Distrito Federal, Ophir Cavalcante, representou o governador Simão Jatene na audiência. No discurso, Ophir fez uma comparação da situação da Província do Grão-Pará à época da Cabanagem e os dias de hoje. “Vivemos em uma federação desproporcional, uma federação caolha, que não olha para o Brasil como um todo, sem contemplar suas necessidades e desejos de desenvolvimento”, disse Ophir Cavalcante. “O Pará, hoje, é outro, com quase 8 milhões de habitantes e uma situação econômica e social bem diferente do século 18, mas ainda precisamos lutar para que desigualdades sejam superadas”, completou.

Segundo Ophir Cavalcante, o Pará ainda busca, hoje, ser recompensado pela exploração maciça de suas riquezas e recursos hidrológicos, “com o governo estadual lutando dia a dia para recompensar a população por essa exploração, mas a União nada faz para atenuar essa situação”, afirmou Cavalcante.

Segundo [o historiador paraense João Lúcio] Mazini, os livros didáticos excluem a Amazônia da história do Brasil, o que se constitui num verdadeiro crime contra a memória do país. O deputado federal Edmilson Rodrigues (PSOL/PA) disse que a Cabanagem nunca terminou. “O povo paraense, na sua essência, é rebelde, com potencial revolucionário e a Cabanagem precisa ser recontada e ter sua história aprofundada, para que esses ideais nunca morram”, disse o deputado.

2 comentários sobre “O enredo da cabanagem

  1. Adilson S. Barbosa 10 de fevereiro de 2016 / 10:10

    Caro Lúcio Flávio, bom dia!
    Não canso de dizer que és uma das vozes mais lúcidas deste país quando se refere a qualquer assunto da Amazônia e do Brasil. Neste artigo mostra mais uma vez tua sapiência.
    Quero, aqui, apenas retificar uma colocação em relação a Cabanagem quando cita o espaço no bairro da Pedreira que homenageia este momento histórico que viveu a Amazônia.
    O espaço foi inaugurado com o nome “Aldeia Cabana de Cultura Amazônica Davi Miguel”. Porém, como muitos paraenses não conhecem outros não gostam das coisas do nosso Estado, a gestão municipal do Duciomar Costa a frente da Prefeitura de Belém e com o endosso do atual prefeito, tiraram o nome Cabana do espaço e ficou apenas Aldeia Amazônica.
    É de se lamentar.

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