Reescrevi parcialmente este texto, publicado no PQP, o jornal do comendador Raymundo Mário Sobral, em 1982.
O primeiro livro dedicado exclusivamente à cabanagem – e ainda hoje o mais importante de uma minguada bibliografia – Motins Políticos, foi escrito por Domingos Antônio Raiol. O primeiro dos cinco volumes saiu em 1865, em Belém. O terceiro (1883) e o quarto (1884) tomos, no Rio de Janeiro. O segundo (em 1868), em São Luiz do Maranhão. No total, 2.912 páginas, que honram e enobrecem a historiografia paraense, dando-lhe uma grandeza nacional. Um novo volume, com os acontecimentos a partir de 1836, foi perdido em um acidente na viagem para a capital maranhense.
Raiol começou a escrever sua obra máxima aos 35 anos, 30 anos depois que viu seu pai, o sapateiro, morrer assassinado pelos cabanos, na Vigia, apenas seis meses depois da eclosão, em Belém, em 7 de janeiro de 1835, da insurreição popular, quando era vogal (vereador municipal), a maior do império brasileiro.
O bar]ao de Guajará disse ter encontrado muitas dificuldades para reconstituir os fatos, em função da “tradição quase apagada que ainda hoje resta de tão calamitosas épocas”.
O que teria provocado esse rápido esquecimento na memória coletiva? O número de mortes, que atingiu um quinto da população amazônica? O reduzido tempo médio de vida do habitante nessa época? A ausência de documentos do período? Ou o ambiente acirrado que subsistiu ao sufocamento da rebelião até 1840, quando o imperador anistiou os rebeldes, ainda em armas na província do Amazonas?
Todos esses fatores – e mais alguns não citados – influíram de alguma maneira para a situação observada pelo historiador. Esse ambiente tenso e polarizado ainda existia quando começaram a sair os volumes do Motina Políticos. Quando Eduardo Angelim morreu, já como pacato integrante do Partido Conservador, seus contemporâneos não o haviam perdoado por sua participação nos episódios de 40 anos antes. Numa polêmica travada então, ainda era acusado de ser um jacobino inflamado.
Quase 150 anos depois, a cabanagem continua a ser uma esfinge para os paraenses, devorando os que não a entendem. No ano passado [1981], os empresários a ressuscitaram como um símbolo de rebeldia diante da dominação central colonialista. A cabanagem marcou um dos raros momentos – e certamente o mais expressivo – de insubmissão de uma população esmagada por decisões externas.
Foi por essa contextualização que a Codebar (Companhia de Desenvolvimento de Barcarena) decidiu prestar uma homenagem, dando às futuras ruas do futuro núcleo de alumina e alumínio os nomes de participantes do movimento.
Inesperada foi a reação à iniciativa de alguns setores da sociedade. Uma reação radical, transmitindo um ódio visceral e um sentimento extremado, que parecia ter estado em hibernação ao longo de século e meio, como se a cabanagem tivesse acabado de irromper e os seus integrantes ainda estivessem vivos.
Mesmo o barão de Guajará, que perdeu o pai, morto pelos cabanos, não se deixou dominar pela passionalidade ou pela busca de um acerto de contas. O tom da sua obra consegue ser objetivo, embora em alguns trechos não seja exatamente imparcial, circunstância que pode e deve ser entendida pelo abalo que sofreu ainda menino.
Cinco anos da publicação do primeiro volume dos Motins, em 1860, o historiador alemão Heinrich Handelman, na sua excelente História do Brasil, captou o ambiente na Amazônia daquele tempo, mesmo nunca a tendo visitado. Apontou para a causa principal da revolta: a exploração da região pelo colonialismo português.
Esse controle absoluto levou à explosão até então reprimida contra os exploradores, odiando-os por causa do seu espírito comercial. Handelman diz que a revolta começou como um ato primitivo, mas essa feição “quando os chefes das revoltas chamaram às armas as populações índias, meio selvagens, os Tapuias, e a sublevação apresentou-se como uma guerra de índios contra os brancos, dos destituídos de bens contra os que possuíam bens”.
Por seu poder de síntese, foi uma das mais exatas definições da cabanagem.