Cabanagem: uma lição esquecida

A historiografia tradicional não vê nexo entre a adesão do Pará à independência nacional e a cabanagem. Mas é possível, ao menos para efeito de análise, dividir esse período de duas décadas em duas fases. Uma, caracterizada pela fermentação ideológica, iria de 1815, data da chegada do padre Luís Zagallo a Belém, até 1831, quando a violenta repressão das tropas imperiais determinou a luta armada. A outra, de 1831 a 1839, foi marcada pela dimensão insurrecional.

Cada uma dessas fases poderia ser subdividida. Por exemplo: de 1815 a 1821, com o retorno dos irmãos Vasconcelos, de Portugal para Belém, e o início da imprensa. Ou de 1835 a 1836, quando os líderes da cabanagem ainda conseguiam segurar a massa rebelde. Essa divisão geral já ajuda o raciocínio.

Alguns historiadores costumam desprezar o aspecto ideológico das lutas sociais no Pará. Mas sempre é bom destacar que enquanto no Rio Grande do Sul, onde estouraria a guerra dos farrapos, apenas os padres sabiam ler e escrever, os 600 soldados que participaram da tomada de Caiena eram pelo menos letrados. A própria proximidade da colônia francesa foi fator importante na propagação de ideias políticas.

Funcionava em Belém um seminário bem aparelhado. Mendonça Furtado, irmão que o marquês de Pombal mandou para governar a Amazônia, dera atenção especial à rede de ensino. A classe dos comerciantes conseguia ser bem mais ampla do que na maioria das demais regiões do país.

Período ideológico

Assim, quando Luis Zagallo introduziu as ideias da revolução francesa, que aprendera em Caiena, já encontrou em Belém uma sociedade secreta que lhe deu proteção. Os cuidados adotados na província para evitar a propagação dos ideais de revolução pernambucana de 1817 demonstram a existência de um solo fértil em território paraense.

Deve-se notar que as ideias republicanas e até mesmo abolicionistas quase que antecederam às de independência. Em 1821 Filipe Patroni propôs a introdução de um artigo no Plano das Eleições, estabelecendo que “um deputado deverá corresponder a cada mil almas, entrando neste número os escravos, os quais, mais que ninguém, devem ter quem se compadeça deles, procurando-lhes uma sorte mais feliz, até que um dia se lhes restituam seus direitos”.

A leitura desse artigo — diria José Ribeiro Guimarães, na denúncia feita ao ouvidor-geral contra Patroni — “deu um grande choque nos escravos; conceberam ideias de liberdade e julgaram que as figuradas expressões de que se serviram os autores da nossa regeneração política, quando disseram ‘quebram-se os ferros, acabou a escravidão, somos livres’, e outras semelhantes, se entendiam com eles, e começaram a encarar Patroni como seu libertador”.

Guimarães acrescentou que essa mesma interpretação era compartilhada “por muitos homens que sabem ler sem entenderem o que leem”. Apesar de reconhecer o mérito da luta de Patroni, pela carta revolucionária enviada de Lisboa e pela fundação da imprensa no Pará, Vicente Sales tende a considerar “muito efêmera essa participação política, que teria qualquer coisa de caudilhesco, imperativo e atrabiliário”, levando-o a entregar-se ao oportunismo. Assim que obteve emprego público, Patroni “abandonou praticamente a arena das lutas”, tendo então uma existência placidamente burguesa.

A observação é parcialmente verdadeira. De fato, as posições de Patroni eram frequentemente dúbias ou confusas. O próprio Guimarães, na sua denúncia, disse que Patroni, ao mesmo tempo que procurava se beneficiar como representante paraense na corte, enviava de lá “incendiários papeis”. Embora dissesse que Patroni não era levado a sério (a nascente interpretação da demência), contraditoriamente, típico representante das classes dominantes, Guimarães “treme” ao considerar que Patroni pode lançar mão do único recurso que lhe resta: procurar “um partido no meio dessa classe que o contempla, que o olha como seu libertador, e então oh, desgraça…”.

A preocupação, no entanto, não se restringia a um único intelectual que buscava o apoio político das massas: “há poucos dias — prossegue Guimarães na sua denúncia — eu ouço o soar de vozes de independência americana e união à causa de Pernambuco; ainda mais, proclamações se têm afixado, que persuadem este maldito sistema! Propagadores existem desta doutrina, alguns se inculcam precursores de Patroni, em quem confiam, porque esperam para (o que eles chamam) a grande obra de salvação da pátria”.

Luta armada

Talvez o que tenha tornado o cônego João Batista Gonçalves Campos no maior líder político desse período foi sua decisão de buscar no interior, entre escravos, índios e caboclos a adesão às ideias que fervilhavam na capital. Além de radicalizar ainda mais o debate político travado em Belém, dando a O Paraense uma linguagem de combate que faltava ao jornal quando dirigido por Patroni, Batista Campos organizava frequentes encontros no interior, onde divulgava as ideias de libertação para uma massa que talvez não as entendesse, mas se deixava fascinar pelo atrativo daquelas proposições.

Mesmo assim, Vicente Sales, um historiador rigoroso, acha difícil enquadrar num corpo ideológico a atuação de Batista Campos. Concorda que ele realmente tinha entre os seus colaboradores alguns negros, todos seus escravos, que naturalmente manifestavam doutrina subversiva, “mas que essas doutrinas incluíam ideias de igualdade social ou de nivelamento de fortunas, ou seja, uma ordem social comunista, é algo que nunca se chegou a esclarecer definitivamente”.

Apesar da participação dos escravos, Vicente Sales considera que, “nesse período da história paraense, pouco se fala da abolição do cativeiro”. As ideias de emancipação “não foram incorporadas ao programa dos chefes supremos da revolução; muito ao contrário, foram violentamente reprimidas, sobretudo pelo caudilho Eduardo Angelim”.

No livro O Negro no Pará, Vicente acha mesmo que a cabanagem não chegou a ser conduzida por uma liderança de consistência ideológica. Foi “totalmente entregue a lideranças despreparadas para o exercício do poder, arrebatada pelos homens do campo, que foram eliminados sucessivamente, para terminar nas mãos de um quase adolescente: Eduardo Angelim”.

As ideias que surgiram nesse período, mesmo as mais extremadas, como as do republicano cearense Vicente Lavor Papagaio, jornalista panfletário, não chegaram a constituir, segundo Vicente Sales, “um corpus orgânica, política e ideologicamente definido”.

O historiador talvez exagere nessas considerações, mas elas são benéficas na medida em que combatem as interpretações idealistas e românticas da cabanagem. Frequentemente são atribuídas virtudes aos seus líderes sem que haja base documental de comprovação. Da mesma forma, porém, as afirmações de Vicente Sales são mais deduções teóricas do que negações comprovadas em documentos. As raízes ideológicas do movimento, que existem e podem ser aferidas pelas denúncias frequentes da classe dirigente portuguesa, ainda não foram reconstituídas adequadamente.

É inegável, contudo, que o movimento adquiriu consistência política na cidade, tanto pela agitação direta como pela atuação da imprensa, dos pasquins e dos panfletos. Mas ela só se exteriorizou no campo; e a partir do momento em que se transformou em luta armada, os líderes citadinos foram progressivamente substituídos por interioranos (ou sertanejos, ou camponeses?). A ideologia foi sufocada pelos combates ferozes. Por isso, Vicente diz que a cabanagem foi “menos um motim político, como historiou o Barão de Guajará, do que a sangrenta luta de classe”.

Ele argumenta que não é mera coincidência a luta armada ter se manifestado precisamente na região de maior tensão social: a da lavoura canavieira, nas bacias dos rios Capim, Moju e Acará, e em outra área de canaviais, de Muaná, ao sul da ilha de Marajó. Foi aí que a cabanagem “atingiu seu verdadeiro estágio de revolução social”. Não casualmente, nessas regiões se concentrava a maior quantidade de escravos.

A lucidez política de Batista Campos consistiu em perceber que a luta armada teria que se desenvolver, sobretudo no campo, “fechando a cidade como num anel. O que mobilizou o nativo foi o preconceito contra os reinóis, isto é, não especificamente contra os portugueses, mas contra a mentalidade de lusitanos natos e brasileiros que se identificaram através de interesses econômicos e posições sociais comuns”.

“O escravo, porém, se sentia mais atraído pela forma de elementar de luta, diretamente contra o senhor que o explorava, irrompida em diversas ocasiões antes da Cabanagem. Mas pouco a pouco a forma superior, a luta política, e desta para o nível mais elevado, a luta armada, ganhou uma parcela dessa população”, complementa Vicente Sales.

Os que não têm atacam

Para realizá-la, seria necessário que existisse um poderoso partido, “consolidado política, orgânica e ideologicamente para conquistar a hegemonia nessa etapa da revolução social paraense. A criação desse partido, no entanto, dependia de alguns poucos líderes sem preparo e incapazes de compreender a grandeza do movimento. Insuflados para a luta pela agitação das lideranças, as massas fizeram a revolução, mas suas reivindicações não foram atendidas pelos líderes. E para a grande maioria dos escravos o engajamento significava apenas a agressão ao senhor”, observa Vicente Sales.

A interpretação do historiador é a mais satisfatória que se apresentou, mas certamente não é a resposta final. Ela é uma pista segura na busca das respostas, desfazendo mitos estabelecidos. Indiscutivelmente os líderes da primeira fase do movimento tiveram mais consistência ideológica. Jorge Hurley chega a dizer que, ao morrer, Batista Campos levou consigo o “segredo da revolução”. Quer dizer que objetivamente não havia condições para a aliança entre os intelectuais e o povo.

Na segunda fase, o comando é dividido entre jovens egressos das cidades, mas dotados apenas de carisma ou liderança natural, e homens humildes, das camadas populares. Não eram mais “os homens de prol da sociedade abastada”, como observa Arthur Cezar Ferreira Reis.

Em livro publicado 20 anos após o fim da cabanagem, o alemão Heinrich Handelmann lembrou que a questão indígena, apesar de ser a mais importante, em função da população de tapuias, ainda não fora resolvida. E advertia: “Faz 20 anos, na grande revolta de 1835, eles [os índios] demonstraram que perigosa arma eles são nas mãos de um rebelde decidido, e como são capazes de, com um levante, destruir num ápice o bem-estar de toda a vastidão da região por anos e anos”.

A lição da cabanagem e a observação espantada de Handelmann foram esquecidas pelas elites dirigentes da Amazônia.

Uma revolta social

O Pará foi a primeira província brasileira a aderir às ideias da revolução constitucionalista do Porto, apenas seis meses depois que o movimento irrompeu em Portugal. Mas foi também a última província a aderir à independência nacional. Apesar disso, a dominação portuguesa permaneceu praticamente inalterada até 1835, quando eclodiu a cabanagem, a mais sangrenta insurreição do império, o mais importante movimento popular da história do Brasil.

A participação da representação paraense nas cortes, em 1821, era tão flagrantemente a favor de Portugal e contra os interesses brasileiros que Fernandes Thomaz, o homem mais influente da política portuguesa, propôs que o Pará deixasse de ser capitania e se transformasse em província de Portugal, “pois se imensa distância nos separa, o amor fraternal, a igualdade de sentimentos nos unem estreitamente”.

Sugeriu ainda que fossem considerados beneméritos da pátria todos os que “tivessem concorrido para a regeneração do Pará”. A intenção real era promover a recolonização, já que, transformadas em províncias, as capitanias brasileiras poderiam ser regulamentadas pela maioria parlamentar portuguesa.

Mas nem era necessário recorrer aos portugueses natos para alcançar esse objetivo. Os representantes parlamentares paraenses na época da independência, dom Romualdo de Souza e Francisco de Souza Moreira, especialmente o primeiro, foram considerados pelo historiador José Honório Rodrigues como exemplos “da mais completa traição ao Brasil, da fidelidade mais absoluta às Cortes, da submissão total a Portugal”.

A falsa adesão

A adesão à independência, transformada em solenidade pelos próprios portugueses, nada significou para os nacionalistas do Pará. Logo que descobriram a manobra de Grenfell, que mentira anunciando que chegava a Belém antecedendo uma grande armada enviada pelo império, os negociantes chegaram a planejar a morte do militar. Mas logo perceberam não ser necessário: as armas, controladas pelo regimento imperial, eram entregues aos portugueses e bloqueadas aos brasileiros. A repressão no período culminaria em outubro de 1823 com o massacre dos participantes da rebelião do dia 15 nos porões do brigue Palhaço: dos 256 que foram presos, apenas quatro escaparam da morte.

Os paraenses jamais esqueceriam esse morticínio, do qual compactuaria o próprio enviado do governo nacional, John Pascoe Grenfell, militar mercenário. E de 1824 a 1831 seriam organizadas novas e violentas repressões do exército ainda colonizador contra possíveis iniciativas de insurreição popular.

A agitação política

Em 1831 o governo imperial decidiu enviar uma expedição ao interior do Pará a fim de acabar — “de qualquer maneira” — com a agitação política na província. Começaram então verdadeiras chacinas, que contribuíram para a apressada reorganização do movimento desarticulado pela prisão e, em seguida, a morte de Batista Campos. Em torno de Félix Clemente Malcher se juntariam jovens, artífices e burocratas da cidade, índios e negros.

Não por coincidência, o engenho Acará, de propriedade de Malcher, se transformou no centro das articulações: ali mandava a mais opressora das elites locais, a dos senhores de engenho, responsáveis pela importação de grande parte dos escravos chegados ao Pará. Os antagonismos sociais e a tensão política se encontravam ali perfeitamente representados. E dali partiu a luta armada. Em 1834, na luta contra o comerciante Afonso de Jales, o mais radical dos portugueses, os cabanos fizeram o primeiro ensaio do que viria a ser a insurreição.

Do campo à cidade

Reunidos os líderes — Eduardo Angelim e seu irmão, Geraldo “Gavião” Nogueira, Francisco e Antonio Vinagre, Félix Clemente Malcher e Lavor Papagaio — começou a arregimentação da massa. Caboclos, índios e negros são convocados para o exército dos rebeldes. Recebem como vestimenta uma farda vermelha, tingida com a casca de murici, e botas altas para evitar a mordida de cobras. As tropas, porém, são massacradas no engenho Acará, que é totalmente destruído.

A conspiração recomeça em Belém e na ilha das Onças, quartel-general dos cabanos. Foi fácil recrutar combatentes: o número de negros e índios dispostos a participar de um movimento armado contra os dominadores portugueses era muito grande. Rapidamente foi se fechando o cerco sobre Belém. Insensível à explosividade dos problemas sociais à sua volta, a cidade vivia interessada nos acontecimentos mundanos.

No dia de reis de 1835, a população saiu às ruas com ânimo festivo para assistir uma peça no Teatro Providência. Enquanto o presidente da província, Lobo de Souza, dava brilho à encenação com a sua presença, os cabanos começaram a ocupar pontos estratégicos da capital. Grande quantidade de homens armados dividiu-se em quatro grupos: um se dirige ao palácio do governo, onde domina facilmente seis soldados ébrios e adormecidos; dois assaltam o quartel e também conseguem a rápida adesão da tropa; o quarto invade o prédio da Loja Maçônica e o depreda.

Guilherme Inglis, que matara vários cabanos na primeira fase do movimento, é a primeira vítima importante do assalto. O presidente Lobo de Souza, mais conhecido pelo apelido de Malhado, é morto num terreno baldio quando tentava ir da casa da amante ao palácio. A cidade é tomada.

O senhor de engenho e fazendeiro Félix Clemente Malcher é eleito primeiro governador cabano e Francisco Vinagre seu comandante das armas. Angelim recusa os cargos que lhe são oferecidos. Rapidamente Malcher, muito moderado, e Vinagre, representante das alas populares mais extremadas, se desentendem. Angelim tenta permanecer neutro, mas é preso num navio de guerra. Com a deposição e morte de Malcher, pelos próprios cabanos, Angelim é solto e se compõe com Vinagre.

Os líderes cabanos não se opõem a que o marechal Manuel Jorge Rodrigues, enviado pela regência, reassuma o poder legal. Entregam-lhe a capital a 26 de julho. Rodrigues acaba abandonando o projeto de pacificação e manda prender Francisco Vinagre e mais 300 cabanos. Angelim consegue fugir para o interior, já agora para organizar “uma guerra de morte ao marechal Jorge Rodrigues”. A violência das palavras de ordem dos líderes e a insatisfação dos combatentes demonstram que, desta vez, a rebelião irá até o fim.

Fase sangrenta

A 14 de agosto de 1835 os cabanos iniciam novo ataque a Belém, sendo recebidos pelas tropas legais, já alertadas. A cidade se transforma numa praça de guerra: combates permanentes são travados nas ruas, navios bombardeiam a cidade, a população foge às pressas para o interior. Morrem muitos cabanos, mas outros são arregimentados imediatamente por uma corneta de chifre, que não para de tocar, chamando voluntários.

Os combates duram 11 dias e cada rua é conquistada com muito sangue. O marechal Jorge Rodrigues consegue escapar, mas um grupo de soldados, que não foi avisado da retirada, fica isolado na igreja do Carmo. Precedidos por escravos, os cabanos atacam com fúria. Só não há uma chacina porque Angelim intervém. Ao completar 21 anos, ele é eleito o terceiro governador cabano, depois de Francisco Vinagre.

Começa a fase mais crítica do movimento: ou porque percebem que os líderes não atenderão suas reivindicações, ou porque se consideram em condições de se vingar dos opressores, negros e caboclos passam a não mais obedecer às determinações dos chefes cabanos. A radicalização é agravada pelo rigoroso cerco feito a Belém; o regente paulista Diogo Antonio Feijó envia para a capital paraense mais três mil soldados, em 11 navios de guerra, que se juntariam às 13 embarcações postadas na barra de Belém, sob o comando do general Soares Andréa, velho conhecido (e inimigo) dos paraenses.

O cerco ameaçador dos navios provoca uma reação na cidade: os comerciantes portugueses encontrados pelos grupos mais exaltados são sumariamente executados nas ruas. Angelim, num manifesto divulgado nesse momento, afirma que a situação seria outra se não tivesse ocorrido o cerco, “pois as famílias, os empregados públicos e os negociantes ter-se-iam recolhido às suas casas, como tem acontecido nas revoluções passadas”.

Talvez ele manifestasse um desejo pessoal e de outros chefes, mas não o do grosso dos cabanos. Para os negros, principalmente, aquele seria o momento ideal de levar às últimas consequências a rebelião, que fora reprimida ao longo dos anos. Em todos os documentos que divulga nesta fase, Angelim parece mais preocupado em manter o movimento sob uma diretriz política, mas já predomina a revolta do povo — contra os seus opressores e, já agora, contra as indecisões dos líderes.

Uma oferta estrangeira

Além dos problemas internos, os cabanos se defrontam com uma complicação diplomática. Um navio inglês, que transportava grande quantidade de material bélico para um comerciante britânico estabelecido em Belém, foi atacado em Salinas. Os invasores saquearam a carga e assassinaram a tripulação. Só um marinheiro conseguiu escapar.

Logo surgiram na baía três navios de guerra da marinha inglesa, com bandeira branca hasteada no mastro. O capitão Strong exigiu que Angelim mandasse hastear a bandeira britânica no lugar da brasileira, saudando-a com 21 tiros de canhão. Exigiu também a entrega dos salteadores à justiça da Inglaterra e o pagamento da indenização devida à companhia de navegação, “porque a Inglaterra não permite que os seus navios sejam molestados”.

Angelim se recusou a atender o oficial. Disse que só pagaria a indenização se o governo brasileiro não cumprisse a sua obrigação legal e entregaria os criminosos à justiça nacional. O capitão Strong aceitou essa posição. Nesse momento, segundo o historiador Domingos Antonio Raiol, que disse ter ouvido a história do próprio Angelim, teria proposto ao governo cabano dinheiro e ajuda militar para sua luta contra o governo imperial brasileiro e para separar a Amazônia do Brasil, transformando-a em vice-reinado britânico. Angelim recusou, ofendido, determinando a retirada da expedição inglesa. [Documentos do almirantado inglês, revelados quase 30 anos depois pelo pesquisador David Cleary, desmentem essa versão. Revelaram a autorização de Feijó à Inglaterra, à França e mesmo a Portugal que utilizassem suas forças no combate aos cabanos. O governo imperial faria de conta desconhecer essa invasão].

O cerco se tornara insuportável. A cidade despovoada, segundo o barão de Guajará, “apresentava por toda parte um aspecto sombrio e contristador. Os rebeldes se tinham descuidado inteiramente da limpeza pública. As ervas e arbustos invadiam as ruas, as praças e as estradas”.

Continua o relato do autor dos Motins Políticos: “As valas nem mais davam esgoto às ruas. Entulhadas de areia e lodo, formavam verdadeiros tremedais em vários pontos. Reconheceu-se então o grande estrago causado pela artilharia dos navios de guerra durante os nove dias de fogo no mês de agosto. As casas estavam abertas e em estado de ruínas, com raras exceções; umas quase demolidas, outras destelhadas e esburacadas ameaçavam desabar, não tendo muitas nem portas nem janelas: os facciosos as haviam arrancado para servir-lhes de combustível nos diferentes misteres da vida, durante os oito meses e dezenove dias que estiveram senhores da Capital”.

Ciente de que o cerco tornava a fome insuportável para os cabanos, Andréa não aceitou a proposta de acordo. Angelim teve se retirar de Belém, que foi retomada pelas tropas legais a 13 de maio de 1836. Andréa, contudo, só entrou na cidade quando ficou seguro de que do contingente cabano de cinco mil homens, restavam menos de 5% para proteger as mulheres e crianças.
Inicia-se então uma grande caçada a Angelim e seu grupo, perseguidos por 1.130 soldados mobilizados para sua captura. Cercado, o líder cabano se entrega. Outros grupos prosseguem nos combates, subindo o rio Amazonas. Tomam cidades, fazem muitas mortes, travaram duras batalhas. Em Óbidos eles têm que enfrentar a reação organizada pelo padre Sanches de Brito. Também em Manaus se forma sólida resistência, comandada por Ambrósio Aires. Bernardino Sena e Marapajuba, à frente de 1.200 homens, conseguem se apossar de Manaus, da qual são expulsos em fins de agosto de 1836. Bernardino Morre, enquanto Marapajuba foge com seus homens. É novamente derrotado nos rios Urubu e Autazes, onde morre.

Os remanescentes, sempre perseguidos pelas tropas do governo, alcançam Maués, onde se mantêm até 1839, quando o major Coelho de Miranda Leão tenta, sem êxito, a rendição do chefe cabano Gonçalo Jorge de Magalhães. Sem se render, ele e seus 800 homens são anistiados pelo imperador, no ano seguinte.

Maior de todos os morticínios

Quantas mortes a cabanagem causou nos seus cinco anos de duração? Os números apresentados nos livros vão de 12 mil a 30 mil, que alguns consideram exagerados. Nessas hipóteses, as perdas representariam um quinto da população do Grão Pará e Rio Negro. Capistrano de Abreu diz que a província estava menos povoada do que um século antes. Pelo menos três mil cabanos foram mortos depois que a rebelião já estava controlada e dentro do presídio em que se transformou a corveta Defensora, fundeada na baía.

Mesmo os historiadores que não encaram com simpatia a cabanagem condenam a violência dos vencedores e os interesses pecuniários do general Andréa. Sua primeira providência ao entrar em Belém, segundo João da Costa Palmeira, “foi pedir mais dinheiro ao governo, enquanto os cabanos economizaram (Angelim deixou com o arcebispo mais de 95 mil contos de réis, dinheiro do tesouro que pediu para ser entregue a Andréa, e 16 mil contos seus, confiscados imediatamente)”.

Andréa praticou também o que nenhum cabano fizera, mesmo na fase mais sangrenta da insurreição: mandou prender dois juízes de direito.

A cabanagem foi, na verdade, o grito de emancipação política da Amazônia, com 13 anos de atraso da libertação nacional. Não levou à autonomia nem promoveu a reconciliação da província com o poder central, do qual se distanciaria ao longo do império. Nem poderia ser de outra forma: enquanto enviava negociadores para parlamentar com os líderes da revolução farroupilha, no Rio Grande do Sul, Feijó mandava a tropa esmagar sem piedade os rebeldes do Pará. Esta medida do tratamento dispensado pelo império não seria esquecido pelos paraenses.

A cabanagem segundo Márcio Souza

O cônego Batista Campos foi a mais ativa liderança do período dos “motins políticos” no Pará, talvez os mais importantes da história brasileira, que se sucederam entre 1821 e 1836, culminando com a cabanagem, que provocou mais de 20 mil mortes até a anistia (alguns citam 30 mil), dada pelo imperador, em 1840, com os últimos cabanos ainda em armas (numa época em que a Amazônia tinha 150 mil habitantes).

Percorreu masmorras por causa do que publicou nos primeiros jornais da província, desafiando o monolítico domínio português em mais da metade do território nacional, que se manteve intacto mesmo depois da independência política do país.

Sua cabeça foi colocada na boca de um canhão, pronto para disparar, com o morrão aceso, quando a execução foi milagrosamente suspensa. Escapou de atentados e espancamentos. Mas acabaria morrendo prosaicamente: um corte de navalha numa espinha carnal, quando fazia a barba, gangrenou. Fugindo pela mata à perseguição determinada pelo governador-geral da província, não teve atendimento adequado. Morreu uma semana antes de estourar a cabanagem, em 31 de dezembro de 1834. Deixou de colher o que havia plantado ao longo de 13 anos de agitação.

No olho do furacão quem ficou foi um cearense de 21 anos, que chegou ao Pará apenas oito anos antes, fugindo de mais uma seca inclemente no agreste nordestino. Eduardo era tão valente, com sua coragem demonstrada no sangrento levante dos comerciantes portugueses de 1833, que deixou de ser conhecido pelo sobrenome, Nogueira. Passou a ser Eduardo Angelim, rebatizado com a designação de uma madeira rija da Amazônia, pau de dar em doido, como se poderia dizer depois.

Antes de abandonar Belém, onde os revoltosos já não mais se podiam manter, por causa do rigoroso cerco das tropas do governo imperial, Angelim chamou o bispo, dom Romualdo. Entregou-lhe mais de 95 contos de réis, dinheiro do tesouro, para repassar ao marechal Soares de Andréa, quando ele ocupasse a cidade. O tirânico Andréa recebeu o dinheiro. Outros 16 contos, que Angelim deixou com um outro religioso, que eram seus, foram confiscados.

Grandes personagens, esses. Mas eles entram e saem ilesos de Desordem (Editora Record, Rio de Janeiro, 252 páginas, R$ 25), o segundo romance da tetratologia concebida por Márcio Souza para retratar ficcionalmente esse período decisivo da história da Amazônia, um dos mais maltratados da história brasileira, ainda pouco referido nos manuais e mesmo nos livros especializados.

O segundo livro é um pouco melhor do que Lealdade, o volume inaugural da série, também relançado pela Record, que promete bancar os dois volumes que ainda faltam para completar o ciclo (Revolta e Derrota). Mas está bem abaixo dos melhores momentos do escritor amazonense, cada vez mais distantes. E é um pálido reflexo literário dos acontecimentos e da gente do Grão-Pará na decisiva primeira metade do século XIX.

Como fez questão de assinalar, Márcio Souza começou a escrever Desordem em Manaus, no dia 2 de fevereiro de 1998, e o concluiu “no Delmonico Hotel, New York, no dia 26 de março de 2000”. Dispôs, portanto, de mais de dois anos para realizar a obra. Mas ela dá a impressão de texto apressado, sem uma pesquisa documental correspondente à importância e complexidade do tema – e sem uma revisão à altura do merecido conceito do autor de Galvez, o imperador do Acre e A resistível ascensão do boto Tucuxi, livros que o tornaram conhecido nacionalmente, permitindo-lhe sair dos limites da sua Manaus natal.

Revisão bem-feita teria impedido que a um período terminado com “final” sucedesse outra oração, iniciada com “Finalmente”, por exemplo, sem o propósito de aliteração, nem eufonia. Ou uma linguagem de dramalhão mexicano para descrever o estado de espírito de Anne-Marie Presle de Senna: “um vazio terrível abria-se em meu peito como uma cratera e a realidade da perda me esbofeteava a cara”. Pura dramaturgia SBT.

Mas isso, para quem lê Márcio Souza de há muito, embora com decrescente prazer nos trabalhos mais recentes, é o que menos conta. Ele não é propriamente um mestre da língua. O que impressiona é vê-lo colocar na boca de Batista Campos, um “filho da floresta”, ciente de que “a selva tudo dá”, a observação: “Em outubro as águas iam baixando rapidamente e os rios começavam a secar nas suas cabeceiras”.

Em Belém, Barcarena ou no Acará, por onde o cônego transitava, Batista Campos jamais poderia ver esse fenômeno em outubro, quando as águas, após o auge da vazante, já estão começando movimento exatamente inverso, do início da cheia, que irá durar um semestre. Transportado para Roraima pelas asas da imaginação, que tudo pode, é verdade, mas nem tudo deve poder, Batista Campos talvez tivesse alguma credibilidade como personagem dizendo essas coisas.

Confiando na sua boa memória e no seu invejável conhecimento, o atual [então] diretor da Funarte (Fundação Nacional de Arte, vinculada ao Ministério da Cultura) se permite antecipar em 50 anos ou um século inteiro a história da borracha na Amazônia. No seu romance, a Belém dos setecentos já desabrocha como “uma flor branca de seringueira”. No século XVIII, “nos tempos do Marquês” (de Pombal), a borracha in natura já dava “lucros fabulosos”.

Uma cultura tão afluente que o seringal no qual Eduardo Angelim trabalhara, o Nova Jerusalém, foi bastante lucrativo entre 1790 e 1820, “com suas manufaturas exportando um grande número de produtos para diversos países”. “No auge de sua produção, nos idos de 1800, o seringal chegava a ter quase 50 seringueiros cortando a seringa, produzindo em cada safra quase 30 toneladas em pélas, que eram transformadas em chapéus, impermeáveis, instrumentos cirúrgicos, por uns 20 trabalhadores”.

É nobre a intenção do autor: mostrar que a cultura da borracha começou mais cedo e teve importância na Amazônia mesmo antes que a revolução industrial lhe desse utilização massiva, como fornecedora de matéria prima de pneumáticos para a indústria automobilística, já na passagem para o século seguinte. Talvez no afã de impressionar desatentos leitores, entretanto, Márcio exagerou na mão. Sua fantasia se desconectou de sua indispensável função pedagógica.

Em 1830, a Inglaterra, maior importadora da borracha amazônica, comprou apenas 211 quilos. Quase 30 anos depois o salto já era notável, mas ainda se limitava a 10 toneladas. Só em 1874, com a aplicação da borracha aos fios telegráficos, é que sua aquisição se aproximou de 60 toneladas, apenas o dobro do que já obtinha o seringal Nova Jerusalém seis décadas antes.

É certo que os volumes se referem a borracha bruta. O Pará já ia se desenvolvendo nos artefatos à base do leite da seringueira, a árvore que chora (segundo o belo título que Vicki Baum deu ao seu excelente romance, escrito sem um conhecimento vivencial, como o do amazonense Márcio Souza, porém muito mais pesquisado e bem finalizado). No entanto, o registro sobre 450 mil pares de sapatos vendidos refere-se ao ano de 1839, pós-Cabanagem.

Essa indústria artesanal se sustentava na proximidade entre a fonte de suprimento e o local do beneficiamento. Os seringais estavam em torno de Belém, uma situação inimaginável aos olhos do belenense de hoje, mas que se pode reconstituir através dos vivíssimos relatos dos naturalistas Spix & Martius, em sua fascinante Viagem ao Brasil.

O incremento das importações de matéria bruta, fenômeno da segunda metade do século XIX (e não da era pombalina), quando a designação da árvore como hevea brasiliensis se consolida (facilitando identificação, coleta e processamento) e espécimes completos são levados para a Europa (não como contrabando, mas com autorização do governo brasileiro), acabariam com o incremento desse parque manufatureiro, confirmando em mais esse caso a tragédia derivada do descompasso entre a frente econômica e a fronteira do conhecimento.

A assimetria histórica de A Desordem dá à incipiente cultura da seringa o status de safra agrícola regular bem antes de começar o século XIX, quando seringueiras estavam sendo replantadas para substituir “as árvores cansadas, doentes e mortas, como vinha sendo há muitas décadas”, contadas pela principal personagem do livro, uma espécie de Vovó Zulmira (de Stanislaw Ponte Preta) avant la lettre, tais as aventuras, venturas e desventuras de sua biografia, a despeito disso elíptica, entre a Guiana, o Pará e a França. Seria tal o plantio e replantio “que só se continuava a chamar os seringais de toda a bacia de silvestres por uma questão meramente de costume”, embora Belém fosse o vértice do centro de produção em torno de si e “toda a bacia” fosse ainda uma incógnita.

O descompromisso com a cronologia histórica, talvez sustentada num hábeas corpus preventivo conferindo arbitrariedade à criação, permite ao ex-diretor da Biblioteca Nacional declarar que Eduardo Angelim vivia em seringal “desde que se entendia por gente”.

Tal declaração equivale a um atestado de retardamento mental ao maior dos personagens da cabanagem, notável exatamente por sua precocidade. Afinal, até os 13 anos ele vivia era em Aracati, no Ceará, de onde sua família foi tocada pela seca para o Pará em 1827. Não foi, portanto, aos sete anos que ele fez essa migração, como está dito no romance, que claudica tanto numa face, a de história de época, quanto na outra, a de literatura.

Nem é um bom romance em si, enquanto obra literária, com construção de personagens, descrição de paisagens, tessitura de trama. Nem como um guia para penetrar numa época tão rica, como a da transição entre o país português e o país brasileiro, na qual uma região começou a ser descarnada de sua identidade e transformada num hinterland dos centros hegemônicos, nacional e internacional, assumindo a feição do colonizador, entronizando em si cabeça alheia, no velho – e sempre trágico – mimetismo.

A Desordem, como muitos outros romances de uma vertente já exaustivamente explorada, tem sua origem num manuscrito encontrado muitos anos depois de ter sido escrito. Mais do que um diário da muy original francesa Anne-Marie, seria um romance embrionário, à espera de autor para lhe dar forma definitiva.

Pelas mãos da organizadora do volume, Terezinha Chermont de Miranda, o verdadeiro criador de tudo se acautela contra os previsíveis críticos de suas várias linhas cruzadas de criação, com meta-ficção, meta-discurso e meta-merchandising (sem falar nas meta-setas envenenadas, de veneno já aquoso e seta empenada pela falta de destreza do arqueiro imaginário).

Assim, ele desdenha das restrições dos “lingüistas do NAEA” (brincadeira com o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará), para os quais “a tradução de um texto francês de meados do século XIX para o vernáculo atual descaracterizaria sua essência sintática. E qualquer tentativa de mimetizar um sabor sintático do século XIX no vernáculo atual não passaria de contrafação”.

A crítica, admite Márcio, é “pertinaz, mas muito rigorosa”. Ele preferiu dar ao leitor comum a possibilidade de chegar ao texto da personagem “e ter uma leitura sem ruídos, sem vocábulos caídos em desuso ou referências enigmáticas que o passado apagou”.

Márcio criou um falso problema, já tantas vezes resolvido pela literatura. Que ruído causaria ao ouvido hodierno ler braças como medida de área, ao invés de hectare, expressão inexistente na fraseologia da época? Mesmo uma francesa, anotaria em seu futuro romance haver classes médias na Belém daquele seu tempo?

Quem quiser conhecer intimamente a gloriosa França, que chegou à grande revolução em 1789, e a Paris que lhe serviu de útero, estará muito bem servido pelos romances de Alexandre Dumas. Seus livros são uma experiência marcante para o resto da vida, com suas minudentes descrições do mundo da nobreza e do mundo da ralé, cada um à sua própria moda, em seu contexto específico. Mais do que por um tratado, manual ou qualquer outra reconstrução intelectual.

Não é preciso, contudo, retornar a tanto nem a tão longe. Haroldo Maranhão, talvez o maior escritor vivo do Pará (há muito anos morando no Rio de Janeiro [já falecido], como o próprio Márcio), resolveu todos os impasses nos quais o autor de Desordem viu-se dividido, recompondo um passado posto em desuso (mas nunca apagado, é claro) para o entendimento dos seus leitores contemporâneos, sem desmerecer estes nem transformar aqueles em caricatura.

O preço do falso problema, que deriva da não assimilação do conhecimento histórico e da forja criativa de fogo baixo do autor, é não ser capaz de reter os personagens, seres que surgem e se evaporam no curso de A Desordem como perfume barato, neste caso não por sua essência bruta, que é marcante, mas pelo fixador ruim que lhe foi aplicado.

Ainda assim, o Márcio Souza parvenu carioca-novaiorquino não conseguirá destruir a obra definitiva que o amazonense Márcio Souza assegurou para a posteridade, quando escrevia com uma inteligência afiada. E com uma alma viva.