Documentos ingleses (2)

Enviado pelo comando da marinha inglesa, sediado em Barbados, com três navios de guerra, para tomar satisfação junto às autoridades brasileiras do Pará sobre a pilhagem do navio mercante Clio e a  morte da sua tripulação, em Salinas, o capitão Strong foi uma fonte preciosa do início da cabanagem. Integrava a mais poderosa armada do mundo. Esta correspondência, do seu superior, introduz os anexos com o relato de Strong, que virão depois. Fiz algumas correções no texto.

ADM 1   CAIXA 296   Posto de Correspondência da Jamaica 1836

De:      Cockburn

Para:  Charles Wood, Secretário do Almirantado

Nº 7  P98   Navio de Sua Majestade President

Bermudas, 7 de maio de 1836

Senhor

Tenho o prazer de transmitir, através da presente, para serem submetidas à  consideração dos meus Senhores do Comissariado do Almirantado, as cópias dos relatórios e dos anexos que recebi do Capitão Strong, do Navio de Sua Majestade Belvidera, detalhando seus procedimentos no Pará, na execução de minhas instruções ao mesmo (cópias das quais foram transmitidas às Suas Excelências com minha carta nº 14 de 1º de fevereiro último) em consequência da captura pirática do brigue mercante Clio e do assassinato da sua tripulação, e  ouso persuadir-me de que a maneira rápida, firme e decidida com a qual esse serviço foi executado, pelo qual os principais indivíduos envolvidos nesse ato atroz foram entregues, para que recebam as devidas penas da lei pelo seu crime, e uma perspectiva razoável foi propiciada para descobrir e assegurar aos outros indivíduos declarados implicados nessa hedionda transação, se provará satisfatória às Suas Excelências e obterá do Capitão Strong e do oficial  por ele mencionado acima, a aprovação de Suas Excelências;  e creio que Suas Excelências concordarão comigo em considerar o Capitão Strong totalmente justificado por não se permitir desviar dos seus propósitos pelos protestos levianos e inoportunos do Presidente do Pará (anotação rabiscada sobre o texto, presumivelmente por Wood: escreva a Halkett [prestes a tomar posse como Comandante-Chefe do posto da Jamaica] para comunicar ao Capitão Strong a apreciação de Suas Excelências pelas medidas tomadas pelos oficiais e sua tripulação) contrários à sua ida àquele lugar para a tão necessária e rápida conclusão do importante objetivo com que ele foi incumbido.

Para dar a Suas Excelências pleno conhecimento da exata posição em que esse assunto agora se encontra, considero correto adicionar aos outros documentos sobre o assunto uma cópia de minha resposta ao Capitão Strong,  que espero ser aprovada por Suas Excelências.

Permaneço, etc…

PRIMEIRO ANEXO

De:      Cockburn

Para:  Capitão Strong, Navio de Sua Majestade Belvidera

            Oficial Superior, Barbados

Navio de Sua Majestade President, 30 de Abril de 1836

Senhor,

Acuso o recebimento de sua carta de Barbados (data não inserida) com seus diversos anexos detalhando os seus procedimentos no cumprimento de minhas instruções, para punir os perpetradores da atroz captura pirática e do assassinato da tripulação do brigue inglês Clio nos arredores  do Pará e,  devo lhe responder expressando minha completa satisfação e aprovação pela maneira dedicada e competente com que V. Senhoria executou essa difícil e importante tarefa. Também, aprovo, indiscutivelmente, a muito apropriada firmeza demonstrada por V. Senhoria em não tolerar os protestos levianos e inoportunos do Presidente do Pará contrários à sua ida àquele lugar para a tão necessária e rápida conclusão do importante objetivo com que foi incumbido, para desviar-lhe ou impedir-lhe do seu objetivo, e confio plenamente que meus Senhores do Comissariado do Almirantado e o Governo de Sua Majestade igualmente aprovarão e apoiarão a sua conduta neste particular sob as extraordinárias circunstâncias do caso.

Li com muita satisfação a declaração feita por V. Senhoria pelo empenho dedicado do Comandante Warren e pelo Tenente Loney atuando no Snake e no Savage, sob suas ordens e as de seus respectivos comandantes, no serviço em questão e, também, pela conduta bastante criteriosa, pronta e incansável do Tenente Wood do Belvidera, quando destacado por V. Senhoria para ficar encarregado dos navios da esquadra, e quero solicitar que V. Senhoria  receba, em seu nome, e transmita aos mencionados oficiais e a outros oficiais indicados por V. Senhoria meus melhores agradecimentos pela dedicação e empenho demonstrados nessa importante ocasião.  Não tenho dúvida alguma que os Senhores do Comissariado do Almirantado, quando eu reportar o acontecido às Suas Excelências, terão a mesma impressão e igualmente agradecerão a conduta hábil e meritória demonstrada por V. Senhoria e pelos referidos oficiais sob seu comando, pela bem sucedida  execução do serviço em questão.

Tomo por certo que V. Senhoria tenha convencido o Comandante Warren da conveniência e da necessidade de garantir que os dois principais criminosos, que foram entregues ao presidente brasileiro, sejam devidamente punidos segundo a lei ou, em todo o caso, que ele faça questão de averiguar, de tempo em tempo, os procedimentos tomados em relação aos mesmos pelas autoridades brasileiras, como também devotar especial atenção e, de tempo em tempo, relatar a V. Senhoria as medidas tomadas com referência a essa parte de suas instruções a ele relativas aos outros indivíduos envolvidos com o assassinato cujos nomes V. Senhoria obteve e, se considerar necessárias instruções adicionais para lhe convencê-lo (Comandante Warren), desejo que lhe escreva sobre o assunto com a maior brevidade possível.

Sou, Excelência, etc.

Os motins políticos

No ano que vem a 2ª e última edição de Os Motins Políticos, de Domingos Antônio Rayol, completará meio século. Maior obra da historiografia paraense e das mais importantes da bibliografia nacional, o livro (com o subtítulo (“história dos acontecimentos políticos da província do Pará desde o ano de 1821 até 1836”) foi reeditado pela Universidade Federal do Pará em 1970, em três volumes, quando era reitor o médico José da Silveira Neto.

Esgotadíssimo, virou raridade, só encontrável, a altos preços, em alguns sebos espalhados pelo país. Uma terceira edição, cuidada com a atenção, o esmero e a competência que a obra merece, precisa ser providenciada desde logo para estar pronta, com larga tiragem, a preço baixo, mesmo que exija subsídio estatal, para circular intensamente entre os interessados na cabanagem. É ainda a reunião da maior quantidade de documentos primários sobre a revolta popular que abalou o Pará e a Amazônia entre 1835 e 1840.

Traços cabanos

A revista Cabocla, que foi criada e dirigida pelo jornalista Genesino Braga, em sua edição de julho de 1936 publicou uma resenha do livro Traços Cabanos, de Jorge Hurley, escrita pelo jovem Arthur Cezar Ferreira Reis (1906-93). Cinco anos antes, ele já publicara sua primeira obra – História do Amazonas. Segue-se o texto, que começa com um roteiro bibliográfico de grande valia. Superficialmente, Reis lamenta que o livro seja apenas e episódios, embora bem documentados. Registra a falta de uma história completa da cabanagem.

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A história da historiografia amazônica já oferece, à galeria nacional, uma série de figuras interessantes, que não têm sido devidamente apreciadas. Vindo de Mauricio de Heriarte, Braun, passando por sobre os vultos memoráveis de Bettendorf, José de Moraes, Jacinto de Carvalho, jesuítas que nos deixaram a notícia pormenorizada das façanhas da ordem de Santo Inácio, passando por sobre Berredo, o injustiçado cronista dos “Anais do Maranhão”, indo a Baena, Accioly, Rodrigues Ferreira, Sampaio, Lobo d´Almada, Aguiar de Andrade, Leonardo Ferreira Peres, André Fernandes de Souza, José Maria Coelho, Almeida Souto, chegamos a José Verissimo, Arthur Viana, João Lucio de Azevedo, Rayol, Santa Rosa, Marajó, Bento Aranha, Teodoro Braga, Sant´Ana Nery, Torquato Tapajós, Bertino de Miranda, Manoel Barata, Aprígio Menezes, Vilhena Alves, Faria e Souza, Inácio Moura, Braga Ribeiro e Palma Muniz, além de outros menores, que trabalharam os materiais com que teremos amanhã o grande panorama da evolução regional no quadro geral da civilização brasileira.

Panorama, no fim de contas, que estava tardando e deve ser traçado por nós do vale para evitar que se continue a referir à síntese dos quatro séculos que o Brasil já viveu, sem a necessária justiça à nossa contribuição, que nada tem de inferior a das demais províncias humanas do país.

Acresce, porém, que há ainda uma série de fatos que não foram convenientemente estudados, reclamando, por isso mesmo, a pesquisa nos arquivos, fase de penetração, de divulgação de documentos. Para isso, o departamento paraense na espécie magnificamente aparelhado, com abundante e razoavelmente catalogado material.

O desembargador Jorge Hurley, que preside com amor, entusiasmo, alto descortino a Casa do Pará, o Instituto Histórico de Belém, avisado estudioso da amazonologia, escritor de louvados e proclamados merecimentos, fidalgo do pensamento, atitudes francas, certo de que sem o conhecimento dessas fontes preciosas, fundamentais, não era possível dizer a verdade histórica, bom heurista, severo, meteu ombros à tarefa beneditina e nos está revelando, minuciosamente um mundo de novidades. Altas novidades, que nos esclarecem, que nos orientam, que nos explicam certos momentos da caminhada amazônica.

Jorge Hurley lançou-se ao esmerilhamento da “Cabanagem”, nas suas origens, nos seus episódios, nas suas consequências. No Arquivo de Belém fez colheita magnífica, selecionada. Escreveu, então, uma trilogia interessantíssima, de que nos manda o primeiro tomo sob o título Traços Cabanos. São quinze capítulos estampando episódios da Cabanagem, a começar no desembarque de Andréa, o caso da escuna Clio, as façanhas de Jacó Patacho, o “Lampeão glebário”, assuntos que ficam definitivamente esclarecidos.

Há, todavia, em Traços Cabanos referências aos meus mirrados, paupérrimos ensaios regionais. No capítulo “Os cabanos no Amazonas”, a referência vale quase como uma contestação. É que, na História do Amazonas, afirmei a morte violenta de Bararoá, no Autaz, a 6 de agosto. Hurley, com o ofício nº 31, de 23 de outubro de 1838, de Andréa ao Secretário dos Negócios da Guerra, encerra as dúvidas a respeito do incidente, que tantos prejuízos imediatos trouxe à ordem geral na Comarca do Amazonas.

Bararoá, pela descrição do futuro barão de Caçapava, foi morto pelos cabanos já no (rio) Madeira. É, assim, um tópico sobre o qual não se pode mais dizer em contrário. Só esse tópico. Porque, em torno da figura de Ambrósio Aires, há ainda outras lacunas desafiando pesquisas. Geralmente apontado como degredado político nordestino, envolvido no movimento democrático, constitucionalista, de 1824, aqui estaria cumprindo penalidade.

Ora, na relação dos que se viram às voltas com a justiça impiedosa, sangrenta das comissões militares de Dom Pedro I, não consta o nome do nosso herói. Sabemos apenas de Alexandrino Magno Taveira Pau Brasil, José Ferreira de Azevedo, frei Alexandre da Purificação, três patriotas daquela jornada cívica que aqui vieram padecer a culpa de suas atitudes políticas. Só esses três nomes aparecem. A não ser que Bararoá, revolucionário, ao fracasso do movimento, como o boticário Vicente Alves da Silva, aqui tivesse vindo parar como fugitivo.

O fato é que já o encontramos, em 1832, contra as nossas aspirações autonomistas, inteiramente ao lado do Governo do Pará, o que não ocorreria com frei Alexandre, que se bateu por nossos anseios libertários. Encontramo-lo, mais, nesse instante, como autoridade legal, no rio Negro. Criminoso político no exercício de funções militares, naqueles momentos de tantas paixões? Teria sido dos anistiados em 1831?!

ma figura singular, surpreendente, esse Ambrósio Aires, rixento, bravo, terror dos cabanos.

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Traços cabanos não é absolutamente uma obra que apresente os vinte anos de intranquilidade que vivemos sob o Primeiro Império e as Regências, com unidade, exposição circunstanciada, ou visão sintética. Estamos diante de um livro de episódios, documentados, que era preciso vir à luz como o foram. Como, de certo, o de Jacó Patacho, “Lampeão glebário”, imortalizado nas páginas de “O Missionário”, de Inglês de Souza.

A história da Cabanagem, serena, das origens ao seu epílogo, tem de ser feita ouvindo-se a palavra dos que a movimentaram e encontramos espalhada no noticiário dos jornais da época, em Belém e na Corte, na panfletária que circulou em massa e foi uma característica muito curiosa do Primeiro Império e das Regências, apreciando-se essa documentação preciosa que agora nos vai sendo confiada.

Ainda há pouco tempo, a 13 de maio, não se fez em Belém e no Rio de Janeiro, a comemoração festiva do centenário do fim da Cabanagem! E não sabemos tão bem que a tomada de Belém não encerrou o ciclo sangrento, como muito acertadamente assinalou, apoiado no que já afirmei documentadamente, Basílio de Magalhães, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro?!

Traços Cabanos é uma contribuição feliz, para o conhecimento de nossa formação político-social. Jorge Hurley nos deu ali um farto cabedal de minúcias importantes.

Mando-lhe, com estas linhas, as minhas felicitações.

Inglaterra cobra reparação

Começo a publicar os “documentos ingleses”, que foram localizados pelo historiador David Cleary no Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra, em Londres, em 1993, e publicados em 2002 pela Secretaria de Cultura do Estado (Cabanagem – Documentos Ingleses), em tradução da ex-cônsul dos Estados Unidos em Belém, Christine Moore Serrão.

Neste documento, o ministro do exterior inglês, Lorde Palmerston, se dirige ao ministro brasileiro, a propósito do ataque sofrido pelo brigue comercial inglês Clio, em Salinas, onde fundeou para receber um prático. A carga foi saqueada e toda tripulação morta por rebeldes, à exceção de um grumete, que conseguiu escapar. O navio transportava armas para comerciantes ingleses em Belém. A Inglaterra era a grande potência da época, com sua temida armada. Exigia indenização pelos danos materiais causados e desagravo à coroa.

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De:    Palmerston

Para :         Galvão, Ministro  Brasileiro, Rio de Janeiro

 

Ministério das Relações Exteriores

26 de abril de 1836

Senhor,

O Ministro das Relações Exteriores tem a honra de acusar o recebimento da comunicação que lhe foi endereçada no dia 18 do corrente por M. Galvão, em resposta à comunicação do Ministro das Relações Exteriores a M. Galvão, com respeito às medidas tomadas pelo Comandante das forças navais de Sua Majestade nas Índias Ocidentais, a fim obter indenização pela apreensão do navio inglês Clio e pelo assassinato de sua tripulação em Salinas, próximo à foz do Rio Pará.  O Ministro das Relações Exteriores deve informar que, conforme  M. Galvão verá pela comunicação que lhe foi transmitida pelo  Ministério das Relações Exteriores no dia 26 de março, o oficial comandante da esquadra enviada ao Pará deveria fazer, em primeiro lugar, uma petição às autoridades do Imperador do Brasil, se é que  essa autoridade possa ser encontrada no exercício do poder e, consequentemente, M. Galvão  está enganado em supor que não deveria ter dado o devido respeito à autoridade do Imperador do Brasil.

Entretanto, não é intenção do Ministério das Relações Exteriores prolongar uma discussão sobre a qual M. Galvão declara não ter recebido qualquer instrução de sua corte, e com respeito a qual, até o presente momento,  já  poderá ter havido um resultado ou outro mais imediato; mas o Ministro das Relações Exteriores considera correto declarar ao M. Galvão que o Governo de Sua Majestade jamais permitirá que os súditos britânicos sejam ultrajados com impunidade; ele deve observar que, se um Governo é tão fraco que sua autoridade não é respeitada pelo seu próprio povo e no seu próprio território, não deve se surpreender se as forças estrangeiras  assumirem a responsabilidade de retificar erros que venham a ser  cometidos contra seus súditos.

Eduardo Angelim

Em outubro de 1999, Paulo Nogueira Batista Jr., então com 44 anos (64 hoje), economista e professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, escreveu um artigo na Folha de S. Paulo sobre um parente distante. Ninguém menos do que Eduardo Nogueira Angelim, terceiro e último governador cabano, em 1835. O artigo foi motivado pela revelação dos documentos que David Cleary encontrou nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra, em Londres. A visão da nação mais poderosa no mundo de então sobre uma das maiores rebeliões populares do Brasil – se não, a maior, em escala mundial.

Tive o privilégio, por deferência de Cleary, de ser o primeiro a ler os preciosos documentos e o primeiro a divulgá-lo, em texto que saiu no mesmo ano em uma página inteira de O Estado de S. Paulo e no meu Jornal Pessoal. Naturalmente, Paulo Nogueira não faz referência à minha matéria. A imprensa brasileira ainda mantinha o hábito incivilizado (hoje, felizmente, extinto) de não fazer qualquer referência ao veículo concorrente.

Reproduzo o artigo de Paulo Nogueira Batista Jr. para ver se motivo os estudiosos da cabanagem a refazerem suas interpretações e relatos com base nos “documentos ingleses”, publicados pela Secretaria de Cultura do Estado em acanhada edição, que precisa ser urgentemente relançada, em edição mais bem cuidada. Talvez consiga assim descerrar o manto de silêncio que ainda cobre os “documentos ingleses”.

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Quanto vale a soberania nacional para as camadas dirigentes brasileiras? Matéria publicada ontem pela Folha fornece uma pista importante.

Examinando os arquivos diplomáticos britânicos, um pesquisador de Harvard, David Cleary, levantou extenso material sobre a Cabanagem, a grande revolução popular ocorrida no Pará de 1835 a 1840. E descobriu um fato impressionante que, até onde sei, não era conhecido dos historiadores da Cabanagem: em fins de 1835, o regente Feijó pediu apoio militar estrangeiro às maiores potências da época -a Inglaterra e a França- para sufocar a revolução no Pará.

Ficamos sabendo que a principal autoridade do governo brasileiro, em reunião reservada com os embaixadores da Inglaterra e da França, solicitou a mobilização de navios e tropas de terra para apoiar a retomada da província rebelada do Pará, naquele momento governada pelo jovem líder cabano, Eduardo Angelim. O embaixador britânico foi informado de que o mesmo apelo estava sendo feito a Portugal, país do qual o Brasil se tornara independente, não sem derramamento de sangue, apenas 13 anos antes!

Em despacho confidencial ao ministro das Relações Exteriores da Inglaterra, de 17 de dezembro de 1835 (cuja tradução foi reproduzida na íntegra pela Folha ontem, p.1-8), o embaixador britânico relata a preocupação de Feijó em não permitir que viesse a público a solicitação do governo brasileiro, uma vez que “a Constituição do Império proíbe terminantemente a admissão de tropas estrangeiras no território do Brasil sem o consentimento da Assembleia”. Se fosse divulgado, o pedido de intervenção estrangeira “seria motivo de descrédito para o governo”, que estaria se mostrando incapaz de derrotar sem ajuda externa “um punhado de insurgentes miseráveis”, explicou Feijó.

Esse episódio vergonhoso revela a desorientação da Regência diante de um problema que era, evidentemente, muito maior do que a revolta de “um punhado” de miseráveis. A Cabanagem foi, senão a mais importante, certamente uma das mais importantes revoluções da história do Brasil. Durante um ano e meio, os cabanos dominaram a quase totalidade da Província do Pará. Depois da retomada de Belém pelo governo do Rio de Janeiro, que acabaria acontecendo sem apoio militar estrangeiro, e da prisão das principais lideranças da revolução, em 1836, os cabanos ainda resistiram no interior até 1840.

O leitor poderá estar se perguntando por que um economista deve se preocupar com esse tema a ponto de dedicar-lhe uma coluna de opinião econômica. Há dois motivos. O primeiro é de ordem nacional. A iniciativa de Feijó não foi a primeira e nem a última ocasião em que dirigentes brasileiros traíram a soberania do país em miseráveis manobras de bastidores. O seu comportamento é bastante típico da postura de muitos governantes ao longo da nossa história, da sua falta de compromisso com a nação e o povo brasileiros. Por essas e outras razões, o Brasil chega ao final do século 20 na condição lamentável em que se encontra, um país tutelado, ainda incapaz de exercer plenamente a independência proclamada há 177 anos.

O segundo motivo é de ordem pessoal. Cresci ouvindo meu pai falar, orgulhoso, do nosso parentesco com um dos principais líderes da Cabanagem, Eduardo Francisco Nogueira, apelidado Angelim, que nasceu em Aracati, no Ceará, na mesma família Nogueira da qual descendemos.

Angelim, um homem extraordinário, que foi aos 21 anos o mais jovem governador de Estado ou Província da história do país, demonstrou durante a Cabanagem grande coragem e altivez, inclusive nos contatos que teve com a Inglaterra e outras potências estrangeiras, num contraste notável com o comportamento de Feijó e muitos outros dirigentes brasileiros naquela época e até os dias de hoje.

Estimulado por essas memórias de infância e adolescência, aproveitei algumas viagens recentes a Belém para levantar material sobre a Cabanagem. Descobri, fascinado, a história emocionante de um dos episódios mais marcantes, e não obstante esquecido e pouco estudado, da história do país.

Políticos como o regente Feijó são sempre lembrados e até celebrados pela história oficial. Já as figuras muito mais nobres de Angelim e dos demais líderes cabanos são pouco conhecidas dos brasileiros.

John Kennedy disse certa vez que uma nação se define não apenas pelos homens que produz, mas também por aqueles que lembra e homenageia. O Brasil começará a se definir como nação quando deixar de celebrar os numerosos Feijós que figuraram e ainda figuram em nossa história e passar a recordar mais a trajetória de homens como Angelim e os outros líderes do movimento cabano.

No Pará e no Rio Grande do Sul

O famoso jornal Aurora Fluminense, que começou a ser publicado no Rio de Janeiro em 1827, registrou, na sua edição de 30 de janeiro de 1835, uma coincidência nos dois extremos do país: o surgimento dos diários oficiais no Pará e no Rio Grande do Sul, províncias que, nesse ano, seriam palco da cabanagem e da farroupilha.

Diz a notícia:

“Temos agora mais dois Correios Oficiais servindo, para a publicação de atos do Governo: são o do Pará e o de S. Pedro do Sul. Talvez seria conveniente que em cada Província houvesse um jornal semelhante, com esse mesmo título. Ao menos (como os nomes valem muito) daria isso ideia de que existem relações entre o Governo Geral e o das Províncias do que vários fatos induzem a duvidar”.