Cabanagem: o massacre

O jornal A Província do Pará, de Belém, já extinto, tinha, como vários outros, uma seção de retrospectiva. Republicava algumas das suas matérias de quatro ou cinco décadas antes. Em 1967, o titular faltou ou se afastou, não lembro direito. O diretor de redação, Cláudio Augusto de Sá Leal, me encarregou de substituí-lo. Eu ingressara no jornal, menos de um ano antes, quando tinha 16 anos, justamente por causa do meu interesse por história. Meu primeiro texto foi sobre o final da segunda guerra mundial.

Para fazer a retrospectiva, fui ao Arquivo Público, bem ao lado, na rua Campos Sales, no centro antigo de Belém. Lendo as coleções do jornal, minha curiosidade foi desviada para outras fontes. Acabei na figura de Felipe Patroni, dono e principal redator do primeiro jornal da Amazônia, O Paraense, de 1821.

Patroni era então um vanguardista, mesmo sendo também um conservador. Combinava ideias políticas republicanas, que poderiam ser materializadas através da adesão ao constitucionalismo recém adotado da metrópole portuguesa. Também propunha a abolição da escravatura. Era uma personalidade apaixonada e apaixonante.

Voltei para a redação com uma reportagem sobre Patroni. Leal, bem mais velho do que eu, se empolgou. Deu uma página inteira ao meu artigo, justificando a importância: eu mostrara que Patroni foi um homem lúcido antes de ser considerado louco. Quem combatia suas ideias impusera a visão de um louco desde sempre. Imaginar utopias era considerado, pelo establishment, uma maneira mal disfarçada de demência.

De pesquisa em pesquisa, me convenci de um fato: a história do ciclo dos “motins políticos” na última província a aderir à nova nação brasileira só poderia ser integralmente reconstituída pelo acesso à farta, maltratada e mal aproveitada documentação primária existente no Arquivo Público do Pará, em milhares de códigos manuscritos. Minha pesquisa nessa fonte durou até 1975. Copiei milhares de páginas, junto com minha então esposa, Lenil, e, depois, com o auxílio da minha irmã, Eliaci. Registro aqui meu tributo de gratidão a elas.

No entanto, a divulgação do resultado das minhas pesquisas só chegou à forma impressa, no livro Cabanagem – O massacre, 45 anos depois. Em três ocasiões, porque o acompanhamento da feroz, inesgotável, apaixonante e assustadora conjuntura amazônica me fez perder o fio da meada ou simplesmente deixar completamente de lado a cabanagem. Desafios mais urgentes e ingentes se impuseram ao jornalista do cotidiano numa frente amplíssima. Paguei um alto preço, em todos os sentidos, por enfrentar esses desafios.

Minha mais útil contribuição ao passado da história foi hipotecada na mesa da contemporaneidade. A reconstituição do que foi acabou sendo dramaticamente sacrificada pelo esforço de não permitir que o está sendo ficasse ao menos sem um registro por escrito.

Tenho certeza que a preciosa listagem de cabanos e aderentes presos e/ou mortos na repressão à revolta dos que não têm contra os que têm dará um novo rumo à historiografia da cabanagem, se os que a escrevem consultarem os dados apresentados no livro. Eles vão possibilitar ricas análises e interpretações com base em informações primárias sólidas sobre raça, trabalho, posição social, econômica e política. Possibilitará o fim de generalizações abstratas.

Os registros por raça, conforme a classificação definida nos documentos, mostram que o número de negros presos (707) era superior ao dos índios (458), por sua vez inferior ao dos brancos (477), o que não deixa de ser surpreendente. Claro: sem esquecer que a estatística não inclui os mortos em combate no interior da região, principalmente na fase de captura dos foragidos.

A diversidade de profissões também é surpreendente. Os prisioneiros declararam ter 71 profissões. A maioria deles (749) trabalhava na lavoura; 213 eram livres,110 escravos, 92 carpinteiros, 69 soldados, 57 alfaiates, 23 carpinas, 21 merceeiros, dentre outros. 121 não tinham ofício; e nada menos do que 12 ourives.

O maior número de mortes aconteceu em 1837 (235), 1836 (174), 1838 (144) e 1839 (89). Das prisões, 614 foram em 1836, 523 em 1837. Dos que não morreram na corveta Defensora (451), 183 morreram de bexigas nos hospitais militares e religioso, enquanto 87 foram incorporados como recrutas e mandados para o sul, principalmente para o Rio de Janeiro; alguns degredados foram para a ilha de Fernando de Noronha.

Foram soltos 191 cabanos, sobretudo escravos, devolvidos aos seus donos. Treze conseguiram fugir.

Todos esses números devem ser relativizados porque não há paradeiro definido nas anotações sobre 859 presos. É de se prever que grande parte deles tenha morrido a bordo da Defensora. Muitos foram recrutados ou colocados em algum serviço público; 79 tiveram como último destino o Arsenal de Marinha, a partir do qual não deixaram mais pistas.

A documentação, até então jamais publicada, reúne o conteúdo dos códices 531 (Correspondência de Diversos com o Governo em 1836), mais os códices 972, 973, 974, 1.130 e 1.131, todos estes com a Relação Nominal de Rebeldes Presos. Preservei a grafia original, sempre que possível, e a íntegra dos registros anotados. Os dados se baseiam nas relações de presos que eram preparadas periodicamente em Belém e pelos comandantes das embarcações militares fundeadas em frente à cidade.
Uma das listas foi preparada em 31 de maio de 1836 pelo tenente Filipe José Ferreira, comandante da charrua Carioca. Outra relação foi elaborada por Martins Bold, comandante da corveta Defensora, em 1º de junho de 1836. Nesse dia o total de presos era de 132, sendo que 20 estavam no hospital e 112 a bordo da corveta Defensora. Os escravos eram 17.
Procurei manter o texto original dos registros. Fiz ligeiras modificações para dar mais fluência ao leitor dos nossos dias. As maiúsculas, por exemplo, foram reduzidas ao mínimo recomendável. O cidadão da época, sobretudo no mundo oficial, abusava das maiúsculas.
Em alguns trechos substituí cidade por Belém, quando a referência específica à capital paraense possibilitava maior clareza. Invariavelmente, cidade era o tratamento dado então a Belém, o que, em certos contextos, prejudicaria a compreensão. Mantive alguns erros, para ser fiel ao original.

Nesses casos, assinalei o erro com observação entre colchetes, em itálico. É o caso de desencontros de algumas datas. Padronizei a grafia de Antônio com o acento circunflexo, cujo uso não seguia um padrão.

A esmagadora maioria dos presos arrolados passou algum dia pela corveta Defensora, transformada num presídio flutuante, ou nela morreu. A Defensora foi construída originalmente no Arsenal de Marinha da Bahia, com base em duas madeiras, a sucupira e o potumaju. Sua quilha foi batida em 1827 e seu lançamento ocorreu em 3 de janeiro de 1828. Tinha “108 pés de quilha, 127 pés de roda a roda, 32 pés de boca, 17 pés e 7 polegadas de pontal ‘do canto superior da quilha à fase superior dos vãos do convés na amurada’”.

Era aparelhada à galera e artilhada com 26 peças de calibre 12. Em operação de guerra, podia abrigar 211 praças; na paz, 170. Em 1830, foi transformada de fragata em corveta, perdendo duas peças de artilharia. No dia 23 de janeiro de 1832 aportou em Belém para deixar os tenentes-coronéis José Joaquim Machado de Oliveira e Seabra, nomeados presidente e comandante das armas do Pará. A 6 de junho do mesmo ano, o capitão-de-fragata Guilherme James Inglis substituiu o comandante Diogo Inácio Tavares à frente da embarcação, que ficou estacionada no porto da capital paraense.

Com o assassinato de Inglis pelos cabanos em janeiro de 1835, o 1º tenente José Eduardo Wandenkolk assumiu o comando. Vinagre tentou desarmar a corveta para usar seus canhões na defesa da cidade e enfraquecer a força naval. Havia uma ordem de desarmamento da Marinha de 8 de outubro de 1834. O inspetor, comandante-de-mar-e-guerra Guilherme Cipriano Ribeiro, foi encarregado da missão. Mas a oficialidade naval, reunida em 1º de abril de 1835, reagiu à determinação e decidiu não dar-lhe cumprimento.

O comando da Defensora passou então ao 1º tenente João Maria Wandenkolk, futuro almirante e barão de Araguari. Durante a duração da Cabanagem passaram ainda pelo comando outros oficiais, como o capitão-de-fragata Guilherme Eyre, o tenente Xavier de Alcântara e o 1º tenente Manoel Francisco da Costa Pereira.

Em seu relatório de 1837, o ministro da Marinha informava que a corveta continuava em obras, para cuja execução o Arsenal de Marinha de Belém fora aparelhado, a evitar de evitar a sua “ruína”. Ao assumir a presidência da província, o marechal Manuel Jorge Rodrigues decidiu transformá-la em “depósito de prisioneiros cabanos”.

Já em 5 de setembro de 1835 ela abrigava 247 prisioneiros. Oito dias depois recebeu mais 17 cabanos, procedentes de Cametá. Logo depois começaram surtos de doenças a bordo (varíola, fluxo de ventre e escorbuto), que mataram 139 presos. Em 27 de outubro eles somavam 150.

Até 15 de novembro desse mesmo ano, 163 presos morreram a bordo “em consequência da má alimentação, da água, da pouca higiene”. A Defensora passou a ser conhecida como “cemitério dos cabanos”.

Dos remanescentes, 59 foram enviados para o Rio de Janeiro, a bordo da fragata Campista, tão logo o general Andréa assumiu a presidência da província, dentre eles um irmão de Angelim. Em 17 de abril de 1836, Andréa comunicou ao ministro da Marinha que a Defensora estava “reduzida a depósito de presos; e por muito tempo não poderá servir de outra coisa, que está tão podre pelos altos e não tem mais que os mastros reais”.

O fluxo de prisioneiros, porém, continuou e foi intensificado: em 4 de junho dela foram retirados mais 22 presos, remetidos para o Rio de Janeiro no brigue Três de Maio; em 17 de junho seguiram pelo Patagônia mais 16; e nada menos do que 145 foram despachados pela charrua Carioca.

Ainda assim, em 1º de agosto o próprio Andréa informava que continuavam a bordo da corveta cerca de 340 presos a ferro, “vivendo em um verdadeiro inferno, apesar de quantas se façam para melhorar sua sorte”, sobrevivendo a meia-ração.

Entre os que continuavam no depósito estavam Vinagre, Meninéa, Aranha, Justo, Feio, Portilho e Piroca. Em junho de 1838 foram retirados de bordo mais 34 presos, incluindo vários padres, que seguiram para o Rio (o acumulado de transferências até então era de 283 presos).

Em 2 de setembro de 1838, Andréa comunicou ao ministro da Marinha que a Defensora “estava ameaçada de ir ao fundo, pela muita água que fazia, mas que sendo o único lugar que podia ter, em segurança, os rebeldes mais criminosos, mandou-a fundear mais chegada à terra, para poder encalhar em caso de urgência, e assim se conservar fazendo menos água”.

Em 15 de março de 1839, o comandante João Manoel da Costa deixou o comando da corveta, sendo substituído pelo 1º tenente Francisco Xavier de Alcântara. Foi elogiado pela “disciplina e asseio em que manteve o navio. Pelo que diminuiu sensivelmente a mortandade que se observava antes”.

Em abril de 1840, por já estar “muito arruinada”, a Defensora foi desarmada e encalhada “para as bandas do Arsenal de Marinha, onde aos poucos a despojaram de todos os ferros e bronzes úteis”, e desmanchada. Os presos passaram para bordo da corveta Amazonas.

(In Subsídios para a História Marítima do Brasil, volume XX, Rio de Janeiro, 1963/64, págs. 11/14)

Quando as tropas legais entraram, as pessoas deviam se apresentar à autoridade competente. Parece que, a partir de certo tempo, os presos deviam se recolher espontaneamente à corveta

Espero ter aberto um novo horizonte para pesquisadores da cabanagem e oferecido uma fonte de informações válidas a todos os leitores. Se as forças me permitirem e a conjuntura amazônica não me demandar tanto, também            espero escrever mais dois ou três volumes a partir das notas que reuni.

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(Esta é uma versão corrigida e adaptada da apresentação do meu livro, lançado em janeiro de 2020.)

Documentação foi salva?

Documentação oficial foi deixada num dos quartos do Seminário quando o marechal Manoel Jorge Rodrigues se retirou de Belém. A fuga foi às pressas. Não havia embarcação suficiente para abrigar tudo que precisava ser levado.

Fica a dúvida: essa documentação foi salva.

Os fugitivos na fortaleza da Barra

O preto Antonino foi preso pelo comandante da fortaleza da Barra, localizada em frente a Belém, em agosto de 1835. Passava sem passe numa montaria. Na véspera, circulara pelo local com uma ordem de Angelim. O comandante da fortaleza, major Anselmo Joaquim da Silva, o remeteu para a capital, preso, pela fragata Imperatriz.

Ele informou o marechal Jorge Rodrigues que cumpria suas ordens, não acolhendo na fortaleza pessoas que ali procuravam abrigo. Por isso, elas “clamam contra mim e dizem que é barbarismo negar-se-lhe um abrigo”.

No mês seguinte, muitas pessoas se abrigavam na Fortaleza, que ficou lotada. Aos poucos, os civis foram sendo evacuados. A única comida, a ração dos militares, era distribuída entre todos. O comandante da fortaleza lamentava que “já não há aquela abundância de peixe. Isso foi bom no tempo da paz, quando passavam canoas e montarias carregadas de peixe”. Os próprios soldados nem mesmo pescar podiam.

Em setembro de 1835, oito meses depois da eclosão da revolta, em Belém, estavam abrigadas na fortaleza 55 pessoas:

* Joaquim Mariano d’Oliveira Cordovil, major reformado de 1ª linha, com sua mulher, Luiza Rosa Mendes Cordovil, de 28 anos, e o afilhado Vitorino dos Santos, de dois anos e meio.

* Gertrudes Bolonha Picar, de 40 anos, viúva de Pedro Adrião Picar, com os filhos: Ana Joaquina, de 13 anos, Antônia da Conceição, de 12, e Pedro Ribeiro, de quatro.

* Carlos Manoel de Souza Trovão, capitão reformado de 1ª linha, de 43 anos, com sua mulher, Ana Jacinta Cordeiro, de 33 anos, e os agregados Maria Francisca, de 14 anos, e Tomazia Maria, de 15.

* Maria Jacinta Coelho, de 21 anos, mulher do 1º tenente Higino, com seus filhos Higino Jacinto José Coelho, de dois anos e meio, e Higino José Coelho, de cinco meses.

* Maria da Conceição Cordeiro, de 20 anos, mulher do 1º tenente Cordeiro, mais a mãe do militar, Maria Perpétua Vergino, de 54 anos, sua irmã, Joana Drotéia Cordeiro, e o filho, Manoel Cordeiro, de 4 anos.

* Padre Gaspar Cerqueira de Gueiros, de 35 anos, professor de latim, com a mãe, Josefa Maria de Nazaré, de 50 anos.

* João Hilário Watrin, escrivão do crime, de 40 anos, com sua mulher, Guiomar Maria Watrin, de 27 anos, com Maria Francisca, solteira, órfã, de 14 anos, Maria José, de 15 anos, solteira, agregada, e Jesuína Vitória, de 12 anos, sobrinha.

* Lúcio José, de 32 anos, paisano.

* Bernardo Antônio, de 25 anos.

* José Saraiva da Rocha, de 45 anos, avaliador do conselho.

* Francisco Jose Silva, de 28 anos.

* Tereza de Jesus, de 33 anos, viúva de Manoel Vicente.

* José Pedro Freire, de 50 anos.

* Leonor de Loureiro Lima, de 50 anos, casada com Francisco Gonçalves Lima Penante, que permaneceu em Belém. Com os filhos Antônio, de 30 anos, Francisca, de 15, e Alexandrina, de 4.

* João Roberto Carneiro, major de 1ª linha, 39 anos, com sua mulher, Henriqueta, de 24 anis, e os filhos Claudino Augusto, de 12, Pedro Augusto, de 9, Gentil Augusto, de um ano e meio, Josefa Carolina, de 10, e Maria Amélia, de 6.

* Estevão José dos Reis, 36 anos, empregado da alfândega.

* Claudia Tereza, de 18 anos, mulher do tenente de 1ª linha Varela, preso na fortaleza. Com sua mãe, Prudenciana Francisca, de 50 anos, sua tia, Luíza Caetano, de 40, a irmã Francisca Eduarda, de 20, e a prima, Francisca Camila, de 22.

* Francisco José Leal, de 46 anos.

* José Francisco, de 18 anos.

* Antônio Valente Cordeiro, de 64 anos. Major reformado de 1ª linha.

* Lourenço Antônio Rodrigues Martins.

* Joana Maria, 30 anos.

Verifica-se que sete dos abrigados eram militares, sendo três majores, um capitão e três tenentes, três já reformados e quatro de 1ª linha. Também havia três servidores públicos e dois professores (de latim). Só um se declarou paisano. Dentre as famílias, algumas continuam a ter descendentes, como os Cordovil, Adrião, Trovão, Gueiros e Watrin.