A cabanagem e nós

Agradeço pela atenção de pessoas amigas que estranharam minha ausência na solenidade comemorativa dos 180 anos da cabanagem, realizada na Assembleia Legislativa do Estado, no dia 25. Não foi por qualquer discriminação. Pelo contrário. Fui atenciosamente convidado para a solenidade pelo presidente da Assembleia, Márcio Miranda, mas não pude ir.

Como não pude ir, antes, à solenidade realizada na Câmara Federal, em Brasília pelo mesmo motivo. Mas me manifestei sobre esse tipo de iniciativa aqui neste blog, em dois artigos, com a intenção de suprir minha ausência.

Já está na hora de tratar a cabanagem de forma crítica, mas não passional, para não repetir lugares comuns que emocionam sem ajudar a compreender o fato histórico. As abordagens mais festejadas e louvadas sobre a revolta são aquelas que reduzem um acontecimento concreto e determinado, consumado sob determinadas circunstâncias, ao momento presente, como se tivesse acabado de acontecer.

É uma interpretação simpática e retumbante, mas nega a história. E história não é feita pelo cortejo ao populismo, a bandeiras políticas e perspectivas ideológicas. No caso, de esquerda. Como foi, durante muito tempo, de direita.

É preciso parar de etiquetar o maior historiador paraense, que era elitista, conservador e barão (do Guajará) com o selo do seu comprometimento, porque seu pai foi morto pelos cabanos na Vigia. Domingos Antonio Raiol odiava os cabanos, mas sua notável estatura pessoal e intelectual lhe permitiram não agredir os fatos.

Os paraenses deviam se orgulhar dos Motins Políticos, uma das grandes obras da historiografia nacional. E do fato de que, mais de um século depois que saiu o último dos cinco volumes da obra, nenhuma chegou perto dela. Não é exagero estimar em dois terços os fatos primários sobre a cabanagem que têm origem no livro de Raiol.

É o bastante para se concluir que ainda não se sabe o suficiente para chegar a conclusões definitivas sobre o movimento, mas já não se admite achar que por ter tomado o governo e colocado três dos seus líderes na cadeira de presidente da província, os cabanos tenham feito um governo popular.

Infelizmente, eles não tinham um programa para executar. Muito menos ainda a intenção de formar uma república, embora a ideia tenha circulado com certa intensidade a partir da revolta de 1817 em Pernambuco e nas subsequentes que tensionaram o nascimento do novo país.

A cabanagem foi uma explosão de indignação, de revolta política, de insubmissão social, de protesto contra a centralização do poder, mas a marca mais impressionante é a miopia do governo imperial, sua incapacidade de compreender a região e o seu povo. Especialmente porque é a mesma miopia de hoje em Brasília.

O enredo da cabanagem

Três dias antes da Assembleia Legislativa do Pará, a Câmara dos Deputados realizou, hoje, sessão solene para lembrar os 180 anos da cabanagem, que se completaram no dia 7 de janeiro, mais de oito meses atrás, portanto. A iniciativa, embora tardia e isolada, é salutar, realizada por proposta do deputado federal paraense Arnaldo Jordy. Pelo menos registra a data no parlamento federal, em Brasília, embora a audiência à sessão tenha sido mínima e a resistência ao tratamento ao fato histórico pela historiografia e o poder nacional persista quase intacta.

A despeito do esforço de divulgação, mesmo a nota à imprensa da assessoria da sessão, que reproduzo a seguir, contém erros ou omissões que precisam ser corrigidos.

A nota não é precisa na data dos 180 anos, situando vagamente a cabanagem “na década de 1830”. Só detalha mais quando se refere à segunda vaga da revolta, em agosto de 1835. Seria para aproximar mais a história da lembrança que dela teve tardiamente a sessão da Câmara?

Não é verdade que os cabanos criaram um governo republicano. Embora o movimento tenha colocado três dos seus integrantes na presidência da província, eles não executaram um programa de governo. A cabanagem nunca teve um. Foi uma reação aos desmandos do poder central, à persistência do domínio colonial português e às condições sociais de vida da população pobre ou segregada.

A nota podia ter usado um historiador local para citação, ao invés de repetir o trecho de Caio Prado Júnior usado ad nauseam, apesar da sua validade. Ou a melhor frase já escrita sobre a cabanagem, de autoria do alemão Heinrich Handelman, que nunca esteve em Belém, no Pará ou no Brasil: o movimento dos que não têm contra os que têm.

Os tucanos estão abusando da correlação da cabanagem com a situação atual. Repetem a deturpação história comum mais à esquerda deles, no velho vício de tomar o passado pelo presente, abstraindo a ação do tempo. E deseducar através da retórica vazia.

Também não é verdade que o espírito da cabanagem persista hoje entre os paraenses. A cabanagem virou concreto e sambódromo (ruim) em Belém do Pará dos nossos dias de alienação, omissão e oportunismo.

Segue-se o trecho de maior interesse do press release.

A revolta dos Cabanos ou Cabanagem foi um movimento popular ocorrido na Província do Grão-Pará, na década de 1830. Insuflados pela recente proclamada independência do Brasil e na esperança de dias melhores, sem escravidão e com mais direitos políticos, negros, índios, caboclos e fazendeiros da província pegaram em armas e enfrentaram o então governo central do Brasil para valerem seus direitos.

“Foi o mais notável movimento popular do Brasil, o único em que as camadas pobres da população conseguiram ocupar o poder de toda uma província com certa estabilidade”, disse o historiador Caio Prado Júnior. Em agosto de 1835, os cabanos voltaram a ocupar Belém e criaram um governo republicano, desligado do restante do Brasil. Ao cabo de cinco anos de guerrilhas, mais de 30% da população paraense – estimada na época em torno de cem mil habitantes – foi dizimada.

O procurador-geral do estado e chefe da Representação do Governo do Pará no Distrito Federal, Ophir Cavalcante, representou o governador Simão Jatene na audiência. No discurso, Ophir fez uma comparação da situação da Província do Grão-Pará à época da Cabanagem e os dias de hoje. “Vivemos em uma federação desproporcional, uma federação caolha, que não olha para o Brasil como um todo, sem contemplar suas necessidades e desejos de desenvolvimento”, disse Ophir Cavalcante. “O Pará, hoje, é outro, com quase 8 milhões de habitantes e uma situação econômica e social bem diferente do século 18, mas ainda precisamos lutar para que desigualdades sejam superadas”, completou.

Segundo Ophir Cavalcante, o Pará ainda busca, hoje, ser recompensado pela exploração maciça de suas riquezas e recursos hidrológicos, “com o governo estadual lutando dia a dia para recompensar a população por essa exploração, mas a União nada faz para atenuar essa situação”, afirmou Cavalcante.

Segundo [o historiador paraense João Lúcio] Mazini, os livros didáticos excluem a Amazônia da história do Brasil, o que se constitui num verdadeiro crime contra a memória do país. O deputado federal Edmilson Rodrigues (PSOL/PA) disse que a Cabanagem nunca terminou. “O povo paraense, na sua essência, é rebelde, com potencial revolucionário e a Cabanagem precisa ser recontada e ter sua história aprofundada, para que esses ideais nunca morram”, disse o deputado.

A cabanagem oficial

Last but not least (na tradução verdadeiramente brasileira: antes tarde do que nunca), o poder legislativo do Pará vai realizar uma sessão solene sobre os 180 anos da cabanagem. Será no dia 24, mais de oito meses depois da data redonda do calendário: a revolta popular começou em 7 de janeiro. A sessão será seguida de uma exposição.

É pouco e, talvez, não seja o mais adequado. A sede da Assembleia Legislativa do Estado se chama Palácio Cabanagem, uma contradição em termos. O que é palácio nega as cabanas, que serviram de matriz para o movimento.

Para manter alguma fidelidade ao fato original e dar consequência à sua afiliação a esse acontecimento, na denominação da sua sede e no painel que decorava o plenário principal (hoje secundário), os parlamentares deviam fomentar palestras, debates e seminários sobre a cabanagem, tão épica quanto desconhecida. Os cabanos, gente do povo, agradeceriam.