O dia da farsa

(Artigo publicado na Agenda Amazônica em janeiro de 2000)

A cada 15 de agosto os paraenses comemoram oficialmente a adesão do seu Estado à independência brasileira. “Comemoram” é uma expressão forçada: simplesmente a data é lembrada e lançada no livro de ocorrências, sem maior indagação, nem interesse. A rigor, pouco paraense sabe o que significou esse momento da sua história.

A data perdeu de há muito um significado mais vivo: quando o presidente Getúlio Vargas se suicidou, em agosto de 1954, a principal avenida de Belém teve o seu nome logo trocado. Deixou de ser 15 de agosto para que fosse homenageado o homem que por mais tempo deteve o poder no Brasil republicano. A data da adesão que procurasse outro abrigo.

Se essa troca tivesse sido feita conscientemente, ótimo: 15 de agosto foi mesmo uma farsa. Montada tão subitamente que criou situações cômicas, como esta: 11 dias depois da cerimônia pomposa, no palácio do governo, o 2º sargento Anastácio José d’Assumpção chegou a Belém conduzindo o 2º sargento João Maria de Moraes, preso em Chaves, no Marajó, “por dissidente e suspeito” de querer a independência, conforme a acusação do comandante das Armas, José Maria de Moura.

Apresentado, o preso foi imediatamente solto e elogiado. Seu condutor regressou a Chaves com as cores da independência, amarelo e verde, na barrentina (uma espécie de gorro), além de uma divisa no braço esquerdo com os dizeres “independência ou morte”. E foi então que toda Chaves aclamou o imperador, comemorando sem distinção a independência. Tudo mudando para nada mudar.

Caso individual e aleatório? As revoltas de Belém, em 14 de abril, e de Muaná, em 28 de maio, mostram que não. Dezenas de pessoas foram presas e degredadas. Mas o diário do terrível ouvidor-geral, Vieira de Melo, no mês da adesão, desnuda a farsa.

No dia 8 ele se refere ao processamento de cinco pessoas, que cometeram o crime de “dar vivas à independência”. Já no dia 12, autoriza a algumas pessoas “o deitarem foguetes” em comemoração à data. No dia 18, comunica que mandou recolher à sua casa um homem que viera preso da Vigia “em um dia de tanto regozijo”.

Mas em 11 de dezembro o ouvidor já se permitia determinar a soltura de um cidadão preso por injuriar os brasileiros e não aceitar D. Pedro como imperador. Argumentou que tal atitude devia ter sido tomada antes da independência, não sendo presumível que, depois, “houvesse um homem tão louco que dissesse semelhantes expressões depois de adotado este sistema”. Loucura bastante utilitária, embora unilateral.

A troca de homenagem na mais nobre (ainda é, apesar de tudo em contrário) via pública de Belém, entretanto, nada teve a ver com a revisão da história que a crônica oficial, a dominante, estabeleceu para a adesão do Pará à independência nacional.

Na verdade, quando a elite – ainda profundamente vinculada à antiga metrópole colonial – realizou às pressas o ato solene de juramento, no atual palácio Lauro Sodré, os verdadeiros adeptos da ruptura com Portugal estavam mortos, degredados ou presos, depois de sucessivamente reprimidos nas tentativas que fizeram para que a derrubada de um poder metropolitano não fosse seguido pelo estabelecimento de outro poder metropolitano, ainda que formalmente sediado no mesmo território nacional.

Mas foi isso o que acabou acontecendo. O nascente império brasileiro aceitou o formalismo da incorporação da última possessão lusitana na antiga colônia ao território da nova nação, sem negar o status quo existente, enquanto os reinóis submeteram-se ao juramento de fidelidade, acatando governo brasileiro como a instância jurídica superior.

Não destruíram, porém, os fortes laços, inclusive econômicos, que os prendiam a Portugal – e, já não mais apenas a Portugal, mas, por extensão, à Inglaterra, o grande poder da época. A manutenção das mesmas condições básicas da época colonial era tão opressiva que se quiser ter uma data verdadeira para marcar um rompimento efetivo certamente será preciso transferi-la por mais 12 anos, chegando à cabanagem, em 1835. Portugal é deixada para trás. A Inglaterra assume o lugar.

A compreensão desse traumático período da história do Pará transcende a datas, heróis, astúcias individuais e formalidades jurídicas. O que o principal historiador dessa época, Domingos Antônio Rayol, o barão de Guajará, chama de “motins políticos” (de 1821 a 1835), desde os movimentos mais objetivos de emancipação política até a eclosão da revolta cabana, tem duas características fortes.

Uma delas decorre dos atritos entre uma elite que inicialmente tentou manter a dominação ultramarina e, constatando a sua inviabilidade absoluta, procurou uma forma de acomodação – a mais proveitosa possível – contra os interesses em ascensão de uma elite que, por princípio ou interesse específico, lutava pela instauração de uma nova ordem.

Uma conciliação ou até uma reforma foi o que buscaram personagens destacados da crônica da época, como o bispo Romualdo Coelho. Ele defendia a consolidação do novo poder “rebatendo com uma mão os rebeldes e com outra removendo as causas da murmuração e queixumes dos povos”. Firmado o governo nacional, o mesmo bispo saudaria, em 1824, a “pronta e sábia substituição do sistema governativo delegado ao povo”, sob a forma de juntas administrativas, pela figura dos presidentes, nomeados diretamente pelo imperador.

O confronto entre essas duas elites chegou a um determinado ponto de enfraquecimento de ambas que uma outra ordem social ameaçou a barreira de contenção que a mantinha sob controle: era a massa de escravos, índios destribalizados e lavradores em fuga do recrutamento militar, submetidos a uma tal exploração que a explosão era uma questão de tempo.

Vista sob essa ótica, a história desses 15 anos, com suas raízes mergulhando mais profundamente décadas antes, emerge como um turbilhão de violência e sangue, num massacre muito mais chocante do que os movimentos pendulares de motins e rebeliões comandados por uma elite citadina, em testes de força que iam e vinham conforme o controle da desproporcional (mas desorganizada) força militar acantonada em Belém.

As elites urbanizadas sempre mantiveram o olho aberto sobre a “soldadesca”, nos estratos inferiores dos corpos regulares, os “amocambados”, os “negros fugidos”, os índios vadios”, que poderiam acabar se estimulando a entrar naquele jogo de golpes e contragolpes que eram dados a partir de quartéis, casas de comércio e palácios.

Essa marginália humana havia aprendido, depois de ter servido de bucha de canhão nas sucessivas revoltas que irromperam e foram sufocadas, que seus líderes (alguns dos quais continuavam a ser senhores de escravos e de terras, ou mesmo comerciantes) as abandonavam, recuavam ou ficavam indecisos nos momentos decisivos dos embates. Uma das maiores lições foi a de outubro de 1823, quando o movimento armado esteve próximo de eliminar a estrutura de poder remanescente do domínio português, mas recuou.

Nesse episódio, a atuação do maior de todos os personagens desse ciclo, o cônego Batista Campos, foi ambígua. Ele confiou demais na junta governativa, dominada pelos reinóis, entregando-lhe um memorial de reivindicações. As assinaturas no memorial serviram de guia para o remanejamento dos militares rebeldes. Durante os sangrentos eventos de 16 de outubro, Batista Campos não saiu da sua casa (o que não o impediu de ser preso e deportado).

O cônego, sentindo-se sem condições de conter os mais exaltados, foi um dos que pediu a intervenção do mercenário inglês John Grenfell, mandado do Rio de Janeiro (com um único navio, que manobrou para criar a ilusão de que atrás vinha uma esquadra) com a missão de conseguir a declaração de adesão, para salvar os ameaçados comerciantes portugueses.

Grenfell levaria a repressão ao ápice do barbarismo ao prender e causar a morte, por sufocamento, 252 dos 256 dos rebeldes jogados no porão do brigue Palhaço, depois de ter executado sumariamente cinco soldados e só não matado Batista Campos, amarrado à boca de um canhão, pela interferência de terceiros e pelo receio de que esse ato reacendesse a revolta.

Félix Clemente Malcher, que viria a ser o primeiro presidente cabano, na condição de membro da junta governativa, endossou a versão oficial de que o massacre do brigue Palhaço fora provocada pelos próprios presos, ao se atacar mutuamente.

Se Batista Campos mudou sua estratégia a partir daí (até morrer, num prosaico incidente, às vésperas da Cabanagem), é uma questão. Mas os que queriam se libertar do jugo feroz tiraram suas conclusões. Quando isso aconteceu, o sangue que escorreu guardou proporção com o volume das drenagens de água típicos da região amazônica, na aberta luta “dos que não têm contra os que têm”, conforme o historiador Heinrich Handelmann viu a cabanagem do seu gabinete de estudos na Alemanha.

As 20 mil mortes ocorridas nos cinco anos da revolta, entre 1835 e 1840 (numa população de 150 mil habitantes) equivaleriam a 2 milhões de baixas na Amazônia de hoje. A maior parte dessas mortes foram praticadas durante a “pacificação” (na verdade, repressão), promovida pelo governo do Rio de Janeiro, e sobretudo entre negros, índios, cafuzos e caboclos.

Após a sublevação de outubro de 1823, a maior e mais importante até então ocorrida, a junta tratou de reorganizar a tropa, para manter sob controle a “soldadesca” e reter o comando. Os três regimentos de infantaria, que tiveram participação ativa nos acontecimentos, foram dissolvidos. Surgiu no lugar deles um Regimento Imperial, cujas praças receberiam armas “apenas por ocasião do serviço da guarnição da capital”.

Os claros na tropa, em conseqüência das baixas, foram preenchidos através de voluntários, os únicos a receber armas próprias. As rondas noturnas da polícia seriam feitas “por cidadãos armados, isto é, por aqueles mesmos que têm interesse na segurança pública”. Uma forma disfarçada de se referir aos comerciantes portugueses. A “soldadesca”, recrutada compulsoriamente, como castigo, arrancada de suas atividades regulares, especialmente na roça, ficaria sob o tacão desse comando.

A adesão palaciana, nesse contexto, foi uma encenação. Se quiserem estabelecer uma data representativa, os paraenses podem escolher 14 de abril, 28 de maio ou 17 de outubro, o macabro dia da tragédia do brigue Palhaço. Não será sem tempo para expurgar nossa história real dessa usurpação.

O discurso oficial

A morte, por asfixia, esmagamento ou colapso físico total de 252 pessoas atiradas umas sobre as outras no porão do brigue imperial brasileiro Palhaço é o episódio de maior impacto da crônica da independência no Pará. Apenas quatro dos presos escaparam, milagrosamente. Para contrabalançar o abalo que a revelação do crime provocou, a junta de governo emitiu uma proclamação que expressa a posição oficial nesse momento de traumática transição, mas é o discurso recorrente em situações análogas, antes e depois.

Diz a junta que a repressão se devia à “anarquia” produzida por “este horrível monstro vomitado pelas fúrias do negro averno” que havia dominado a “soldadesca”, deixando a “segurança individual e de propriedade sem apoio”. Exaltava a participação da “valorosa tropa de milícias”, à qual se teriam juntado “alguns cidadãos estrangeiros” (na verdade, foram os criadores e controladores dessas milícias).

Conclama à conciliação, para que fossem eliminadas de vez “essas distinções, vinganças e ambições, procurando no seio da união o restabelecimento da ordem social”, porque o Brasil “é hoje a pátria comum de todos que adotaram sua independência”. Suas palavras de ordem eram: “Confraternidade, união e ordem pública”. Mas para atingir uma vocação preestabelecida para Belém, que, por sua “natureza”, estava destinada a ser “o empório das riquezas de um e outro hemisfério”.

A cronologia

10/12/1820 – Chega a Belém a notícia da convocação das cortes portuguesas, com a adoção da monarquia constitucional.

1/1/1821 – Adesão do Pará à revolução constitucionalista do Porto. Uma junta constitucional de nove membros é eleita. Filipe Patroni é indicado para fazer a comunicação à corte.

11/1821 – Patroni manda de Lisboa uma circular fazendo a propaganda da independência. Os irmãos Vasconcelos, portadores da mensagem, são presos, processados e deportados para Portugal.

12/1821 – Chegam a Belém a primeira tipografia e o primeiro tipógrafo, que irão publicar um jornal a favor da independência.

1/1822 – Patroni volta ao Pará.

            Eleição de uma nova junta constitucional, com seis membros.

4/1822 – O brigadeiro José Maria de Moura, que se notabilizou pela repressão aos rebeldes de Pernambuco, assume o Comando das Armas do Pará.

             Começa a circular o jornal O Paraense, editado por Patroni, com críticas à junta e propaganda da independência.

5/1822 – Preso, Patroni deixa a direção de O Paraense. É substituído por Batista Campos. A circulação do jornal não é interrompida.

9/1822 – Batista Campos e outras cinco pessoas, adeptas da independência, são presas por ordem da junta.

10/1822 – Todos são soltos: o conselho de justiça criminal os absolve.

               Atentado contra Batista Campos, que é ferido.

1/1823 – Mesmo demitido, o governador das armas permanece no cargo.

2/1823 – Nenhum português é eleito para a Câmara de Belém. Os portugueses tentam impugnar a eleição. A junta não concorda.

1/3/1823 – Golpe dos comerciantes portugueses, com o apoio dos chefes militares. A junta e a câmara são dissolvidas e seus membros presos. Antigos vereadores são restabelecidos nos seus cargos. Nova junta é formada. 16 pessoas são deportadas.

                Comerciantes portugueses formam duas milícias, uma de artilharia e outra de cavalaria.

14/4/1823 – Sublevação militar pró-independência é sufocada devido à hesitação de seus líderes.

5-6/1823 – Rebeldes são condenados à morte. O bispo d. Romualdo Coelho consegue sustar a aplicação da sentença. O comandante das armas insiste em executá-la, mas a maioria dos oficiais é contra. Os 271 presos seguem para Lisboa, mas a maioria morre na viagem. Os sobreviventes são soltos na capital portuguesas depois de seis dias de prisão.

28/5/1823 – Adesão do Pará à independência é proclamada em Muaná, na ilha de Marajó. O movimento é reprimiado violentamente. Novas prisões e degredos.

10/8/1823 – John Grenfell fundeia em frente a Belém no comando de um brigue imperial, com ordem de obter a adesão, aprovada no dia seguinte pelas autoridades locais.

15/8/1823 – Juramento formal da adesão.

17/8/1823 – Eleição da nova junta governativa, composta por quatro militares e um religioso, três deles favoráveis a Portugal e dois à independência.

Márcio Souza e a cabanagem

O escritor Márcio Souza não é um bom ator. De forma inconvincente, ele simula me desconhecer. Interrompido na aula magna que proferiu na abertura do Programa de Pós-Graduação da UFPA, me dedicou curtíssimos minutos. Começou tentando se lembrar do meu nome completo. Saiu Lúcio, depois Lúcio Flávio. A memória onomástica parou aí.

Márcio se enredou por algum tempo na busca pelo meu sobrenome por associação de ideia, querendo sugerir minha condição de quase anônimo, figura menor, a custo citada.

Lembrava-se vagamente de eu editar um tabloide, ser jornalista, que “apanhou” de alguém num restaurante, de espicaçar a elite com vara curta. Começou a pedir ajuda dos demais participantes da live, que se mantinham em silêncio, visivelmente constrangidos. Até que o jornalista e professor Manuel Dutra me identificou por inteiro. Outros aderiram na ajuda ao embaraço mnemônico do ilustre conferencista.

Márcio me conhece há muitos anos. Aparenta estar em boa forma física, aos 74 anos, três a mais do que eu. Ele me incorporou à aula que estava dando para um ajuste unilateral de contas. Ele diz que rompi relações com ele, porque não tenho senso de humor, quero ser o dono da Amazônia e a simples existência do meu ex-amigo não permite essa minha presunção. Condescendente, admite que conheço a Amazônia, tema comum das nossas vidas. Mas que não quero dividir o domínio da questão.

Não rompi relações com ele. Apenas critiquei alguns dos seus mais recentes livros, depois de ter elogiado com sinceridade e admiração a sua obra até a tetraologia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro, materializada nos romances Lealdade (1997), Desordem (2001), Revolta (2005) e Derrota (2006).

Um verbete da enciclopédia do Itaú Cultural diz que “essa obra apresenta, por meio de ficção, momentos históricos relevantes do Pará, explorando especialmente o movimento da Cabanagem, ocorrido entre 1783 e 1840. É considerada, ao lado da trilogia O Tempo e o Vento (1949-1962), de Érico Veríssimo (1905-1975), uma das obras brasileiras que fazem um grande painel sobre um momento histórico nacional importante. Registrando a reação do Norte à tentativa de unificação do território e de construção de uma identidade nacional, Márcio Souza mostra o desejo de independência dessa região e sua discordância com o centro político-cultural brasileiro da época, um momento, de certa forma, apagado pela história tradicional que narra o forjar da nação brasileira”. 

A boa intenção de Márcio na elaboração dessa saga não foi bem sucedida, na minha opinião, que expressei no Jornal Pessoal. Ele não contestou meus artigos porque não quis. Seu espaço para a resposta estava garantido. Márcio, porém, não quer crítica; quer elogio. Não aceita um debate simples, um duelo com o uso de argumentos e linguagem; quer a glória. Não dei anestesiar meu senso crítico e o sentido do que escrevo por amizade, conveniência ou qualquer motivo que não seja o interesse público.

Embora tenha simulado dificuldade para tomar conhecimento de uma pessoa menor, não mais do que um reles jornalista, Márcio se lembrou de ter aprovado que a sua editora, a Marco Zero, publicasse dois dos meus livros. Na verdade, foi um só, sobre Carajás, de 1982, com duas edições. A iniciativa da publicação foi dos sócios dele, o também amazonense Felipe Lindoso e a sua esposa, Maria José Silveira, de Minas, como a grande amiga em comum, também mineira e jornalista, Tânia Maria Mendes.

Não vou me defender de outras mentirinhas e futricas que Márcio despejou, certamente achando que estava sendo irônico e sarcástico, o autor cosmopolita de sucesso diante da figura insignificante do jornalista de província.

Espero que para o leitor deste blog seja mais útil reproduzir uma das críticas que escrevi sobre a tetralogia de Márcio, publicada no JP 345, de julho de 2005. Talvez transcreva crítica anterior, que não está digitalizada.

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A “revolta” de Márcio

e a revolta dos cabanos

Márcio Souza lançou em Belém, no final do mês passado, com patrocínio oficial do governo do Estado, o terceiro livro da tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro. O título, Revolta (Editora Record, 301 páginas), ficaria mais coerente se fosse algo como “O garanhão do Grão-Pará”. Do início ao fim, Maurício Vilaça traça quase todas as personagens do romance, desde uma ninfeta de 13 anos, mas já prostituta experimentada, até pudica senhora integrante de uma associação de novas amazonas, uma precursora liga feminina que atuou no período dos “motins políticos” no Pará (1821-1835), que constitui o eixo da sagra do escritor amazonense. O romance termina como alguns daqueles filmes sangrentos, no qual o enredo se exaure no matadouro geral. Quase não havia mais mulher para o apetite voraz (e sempre eficiente) do jovem comerciante.

Marcelo foi educado em Baltimore, nos Estados Unidos, é refinado, mas o maior movimento de massa da história brasileira, a Cabanagem, é detalhe, para ele e seu diário (sobre o qual a trama ficcional – mal – se sustenta). Nessa autêntica guerra “dos que não têm contra os que têm”, sucumbiram algo como 20% de todos os habitantes da província, que eram uns 150 mil. Se tivesse ocorrido atualmente, nas mesmas proporções, a Cabanagem teria produzido dois milhões de mortos em cinco anos. Há algo que se lhe equipare ao longo dos cinco séculos de Brasil dominantemente europeu? Ou, em episódios do mesmo tipo, em qualquer outra parte do mundo?

O morticínio é produto de violência, arbítrio, desumanidade, barbárie. É quase natural que um branco, que tem a temer por muitos bens seus (embora recebidos de herança, um tanto suspeita, deixada por um tio), considere a revolta como a liberação dos piores instintos do homem. A revolução francesa também foi isso para os que dela participaram, na condição de vítimas, por deliberada culpa ou por acaso.

Mas Bertolt Brecht já alertava para o perigo de só se olhar para a violência do rio, sem ter em conta as margens que o comprimem. A violência dos que se liberam guarda sempre alguma proporção com a violência dos que os mantinham cativos até então. A violência é a parteira da história, proclamava Karl Marx. Não se faz omelete sem quebrar os ovos, acrescentará algum líder de esquina.

A revolta de Belém em 1835 antecedeu de quase quatro décadas a revolução da Comuna de Paris, em 1871, analisada com olho clínico pelo mesmo Marx, que ali sepultou seus últimos sonhos de insurreição política de massa (no fim da vida estudou russo para entender melhor a possibilidade de a revolução, etapa superior do capitalismo e seu dobre de finados, ocorrer numa terra de economia primitiva, na qual intelectuais de vanguarda comandariam, num autêntico putsch, uma massa humana sem outra perspectiva além do pão e da liberdade, a segunda conquista sendo sacrificada, logo em seguida, no altar profano da primeira; só sem liberdade era possível viver sem susto; era?).

O que diferencia a Cabanagem, anterior, mais atrasada, da Comuna, posterior, mais evoluída? Ora: que Belém, mesmo saindo mais cedo, não era nem uma pálida imagem de Paris, antes ou depois das barricadas de rua, que acabariam provocando uma contra-revolução urbana, promovida com sagacidade pelos vencedores, que abriram as grandes avenidas para sua dominação. Embora em ambas as situações o motor da explosão tenha sido a insatisfação do povo, comprimido até o ponto da irrupção selvagem, na Comuna havia ideias e substrato ideológico por trás das barricadas, não só pólvora e sangue.

Em Belém, uma vez executados os representantes do poder estabelecido (que ainda era português, apesar de formalmente nacionalizado), não havia um líder esclarecido nem um programa a cumprir pelo governo popular. Apesar da idealização que Dilke Barbosa Rodrigues promoveu em torno do avô, Eduardo Angelim, repetida sem discernimento pelos sucessores (nem por acaso, o livro que ela escreveu nunca passou da primeira edição), não há provas de que os líderes da Cabanagem eram os intelectuais da revolução, uma vanguarda como os bolcheviques na Rússia dos czares.

Pode-se dizer que a Cabanagem começou a perder atualidade uma semana antes da revolta começar, em meio a uma festa pagã malmente sincrética, em 7 de janeiro de 1835, quando o cônego Batista Campos se feriu, ao fazer uma prosaica barba. O ferimento gangrenou e ele morreu, nas matas de Barcarena (sua sandália havaiana seria trazida, 150 anos depois, para a tumba que ocupa no Memorial da Cabanagem, no eternamente inconcluso Entroncamento). Com o fim do cônego (e a loucura de Felipe Patroni, o maior intelectual do período), se foi a ponte para o futuro do movimento, que daria conteúdo ao que tem sido apenas uma frase: a Cabanagem foi o primeiro movimento de sedição e rebelião que levou o povo ao poder institucional no Brasil.

O povo sentou no trono e não soube o que fazer. A violência respondeu no lugar da voz de comando, que deixou de existir. Foi um ajuste de contas – de cor e de posse. Uma purga do passado, com juros, correção monetária e um spread como se já estivéssemos pagando o preço do modelo unha-e-carne Lula-Palocci.

Os autores solidários e identificados com a causa do povo, como se fossem Marat tropicais, em nível mais imediato e superficial, tentaram – e ainda tentam – edulcorar os presidentes do povo: Malcher, Vinagre e Angelim. À falta de provas mais sólidas sobre o que eles pensavam, queriam e fizeram de distinto, fica-se com a frase de Handelmann como a melhor definição para a Cabanagem: um acerto de contas dos que nada tinham contra os que tinham, sem uma diretriz política, filosófica, ideológica, cultural. Na faca.

O historiador alemão Handelmann sequer colocou seus pés no Brasil. Seu belo livro foi escrito, na segunda metade do século XIX, à distância do país que tanto o interessou. Já Márcio Souza é amazonense (ainda um amazônida?), conhece bem a sua terra e era uma promessa de contestação à visão passadista predominante na historiografia elitista. Seu mais recente livro, entretanto, apenas renova a decepção dos anteriores (Lealdade Desordem, na quase tetralogia; praticamente todos, depois de Mad Maria). A novidade que ele proporcionou, com seu rabelaiseano boto tucuxi, parece ter-se diluído numa literatura primariamente pornográfica. Adelaide Carraro assinaria sem melindre várias das páginas de Revolta, cujo acento comercial é marcante. Henry Miller, não.

Quanto à Cabanagem, que devia ser o móvel da empreitada literária, acaba não passando de seu décor. Márcio tem dela uma visão preconceituosa, distorcida, simplória e raivosa, como se fosse um comerciante português em atividade em 1835 e não um intelectual do século XXI, obrigado a mostrar tudo e não apenas um aspecto, projetado como falsa totalidade. Obrigado a ser complexo e não maniqueísta, dual. A Cabanagem não é a Comuna nem a Revolução Francesa, mas não é só chacina executada ao lado da cama na qual Vilaça atira suas também insaciáveis presas, como se o clima estivesse sempre a transubstanciar suor em sêmen. Onde não há realmente informação histórica, faltou inventividade ao autor, que se contenta com clichês, palavreado pomposo e desleixo.

Márcio se refere a um “engenho de Ananindeua”, onde o anti-herói Maurício encontra sua amada Joaninha, quase um século antes de Ananindeua começar a existir como distrito, formalizado em 1920, e município, em 1943. Em 1835 Ananindeua era, simplesmente, Belém. Só em 1916, com o interessante Curtume Maguari, de Sounders & Davids, começou a ter perfil próprio. O Cacoalinho também não era bairro em Belém.

Além de impropriedades factuais como essas, há erros de construção da história, que resultam da desatenção do autor (o que, no cinema, muito caro a Márcio, se diria falha de continuidade). Em certo trecho, a madrinha de Maurício, para se livrar de situação incômoda, “simula uma enxaqueca, recolheu-se ao quarto e despachou o casal amigo”. O correto seria Simone despachar o casal amigo e se recolher. Ou se recolher e deixar que o casal amigo decidisse ir embora, ao perceber que ela não retornaria à sala da casa, onde se encontravam.

São errinhos, é claro, que seriam perdoáveis se o fundamental no livro os compensasse. Mas ambos, em coerência de má qualidade, mostram que Márcio Souza apenas se desincumbiu da tarefa, sem maior aplicação, ou já não é mais capaz de escrever algo novo à altura de Galvez Imperador do Acre, a rigor, o único dos seus romances que resistirá à sanha do tempo. Tempo, aliás, é que não lhe faltou para revisar sua obra, antes de manda-la para impressão: encerrou o romance em julho de 2003, no bairro carioca do Leme, no Rio de Janeiro, e só o publicou mais de um ano depois. Se não foi bom autor, devia ser, como já deu demonstrações de ter sido, bom leitor.

Conta a lenda que um coronel, muito famoso em Belém, era tão Caxias que prendeu a si numa cela, ao constatar-se em erro, e jogou lá fora as chaves. Sem querer, Márcio Sousa repetiu o gesto: obrigou-se a escrever uma tetralogia épica sobre um país chamado Pará com material que mal dava para um livro, em nada melhor do que os produzidos em forma pré-moldada, com ânimo de medalhão.

Em um único volume, compacto e denso, o saudoso Haroldo Maranhão já havia nos dado, com Cabelos no coração (necessitando de urgente 2ª edição), o que Márcio prometeu e está a tentar realizar, sem sucesso. Tomara que releia o romance do vizinho paraense antes de fechar essa tetralogia até agora frustrada e frustrante. O fecho romanesco é anunciado com o título de Derrota, sobre o fim da Cabanagem, já no Amazonas. Se pudesse ter um componente autobiográfico, talvez fosse melhor tentar Fausto. Com um Mefistófeles tapuia pelo meio

Na Fortaleza da Barra

Em setembro de 1835, estavam abrigadas 55 pessoas na Fortaleza da Barra, às proximidades de Belém, que ficou lotada. Aos poucos, os civis foram sendo evacuados. A única comida era a ração dos militares, que era distribuída entre todos. Lamentava o comandante da fortaleza, major Anselmo Joaquim da Silva, que “já não há aquela abundância de peixe. Isso foi bom no tempo da paz, quando passavam canoas e montarias carregadas de peixe”. Os próprios soldados nem mesmo pescar podiam.

A lista de abrigados:

* Joaquim Mariano d’Oliveira Cordovil, major reformado de 1ª linha, com sua mulher, Luiza Rosa Mendes Cordovil, e 28 anos, e o afilhado Vitorino dos Santos, de dois anos e meio.

* Gertrudes Bolonha Picar, de 40 anos, viúva de Pedro Adrião Picar, com os filhos: Ana Joaquina, de 13 anos, Antônia da Conceição, de 12, e Pedro Ribeiro, de quatro.

* Carlos Manoel de Souza Trovão, capitão reformado de 1ª linha, de 43 anos, com sua mulher, Ana Jacinta Cordeiro, de 33 anos, e os agregados Maria Francisca, de 14 anos, e Tomazia Maria, de 15.

* Maria Jacinta Coelho, de 21 anos, mulher do 1º tenente Higino, com seus filhos Higino Jacinto José Coelho, de dois anos e meio, e Higino José Coelho, de cinco meses.

* Maria da Conceição Cordeiro, de 20 anos, mulher do 1º tenente Cordeiro, mais a mãe do militar, Maria Perpétua Vergino, de 54 anos, sua irmã, Joana Drotéia Cordeiro, e o filho, Manoel Cordeiro, de 4 anos.

* Padre Gaspar Cerqueira de Gueiros, de 35 anos, professor de latim, com a mãe, Josefa Maria de Nazaré, de 50 anos.

* João Hilário Watrin, escrivão do crime, de 40 anos, com sua mulher, Guiomar Maria Watrin, de 27 anos, e ainda Maria Francisca, solteira, órfã, de 14 anos, Maria José, de 15 anos, solteira, agregada, e Jesuína Vitória, de 12 anos, sobrinha.

* Lúcio José, de 32 anos, paisano.

* Bernardo Antônio, de 25 anos.

* José Saraiva da Rocha, de 45 anos, avaliador do conselho.

* Francisco Jose Silva, de 28 anos.

* Tereza de Jesus, de 33 anos, viúva de Manoel Vicente.

* José Pedro Freire, de 50 anos.

* Leonor de Loureiro Lima, de 50 anos, casada com Francisco Gonçalves Lima Penante, que permaneceu em Belém. Com os filhos Antônio, de 30 anos, Francisca, de 15, e Alexandrina, de 4.

* João Roberto Carneiro, major de 1ª linha, 39 anos, com sua mulher, Henriqueta, de 24 anis, e os filhos Claudino Augusto, de 12, Pedro Augusto, de 9, Gentil Augusto, de um ano e meio, Josefa Carolina, de 10, e Maria Amélia, de 6.

* Estevão José dos Reis, 36 anos, empregado da alfândega.

* Claudia Tereza, de 18 anos, mulher do tenente de 1ª linha Varela, preso na fortaleza. Com sua mãe, Prudenciana Francisca, de 50 anos, sua tia, Luíza Caetano, de 40, a irmã Francisca Eduarda, de 20, e a prima, Francisca Camila, de 22.

* Francisco José Leal, de 46 anos.

* José Francisco, de 18 anos.

Antônio Valente Cordeiro, de 64 anos. major reformado de 1ª linha.

* Lourenço Antônio Rodrigues Martins.

* Joana Maria, 30 anos.

Personagens (3)

Continuo a publicar a seleção dos principais cabanos presos pela força imperial que combateu a cabanagem. Seus nomes constam da relação nominal dos rebeldes presos em 1836, contida nos códices 972, 973, 974, 1.130, 1.131 e 1.132 do Arquivo Público do Pará. Grifei alguns trechos mais importantes.

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Cristino José Brandão. Cafuz, 30 anos, lavrador. Quando os cabanos tomaram o governo, no tempo dos cabanos, “passou todas as escravas do barão de Jaguarari a chicote e palmatória”. Remetido para bordo da corveta Defensora em março de 1838. Morreu no hospital de S. José em abril de 1839.

Custódio Miguel Arcanjo. Índio, 43 anos, casado, pescador. Comandou o ponto dos rebeldes em Val-de-Cans. Invadiu a fazenda na boca do Una com um grupo de cabanos para tentar seduzir os escravos do coronel João de Araújo Rozo, dono da propriedade, para assassinar o feitor e dois pretos da fazenda, que não quiseram acompanhá-los. Acabou sendo preso por Rozo e enviado para Belém, em junho de 1837. Morreu a bordo da corveta Defensora, em fevereiro do ano seguinte.

Custódio da Vera Cruz. Cafuz, 51 anos, viúvo, ferreiro. Logo depois da entrada dos rebeldes em Belém, foi ao sítio Impaúba, de Maria do Carmo de Barros, que ali estava com mais quatro filhas donzelas. “Desumanamente as passou a palmatória até lhe arrebentarem as mãos, além dos insultos que lhes fez”. Em Belém, praticou assassinatos e roubos, assim como já tinha feito em outro tempo naquele distrito, matando até sua própria mulher. Preso em Belém, foi para a Defensora em agosto de 1836. A última referência foi anotada quando ele seguiu para o hospital de S. José em outubro do mesmo ano.

Diógenes Thomaz Guilherme. Do Rio de Janeiro, branco, 37 anos, negociante.

Apontado como escrivão de Eduardo Angelim no Acará, onde foi preso, em 1836. Permaneceu na corveta Defensora de setembro de 1836 a agosto de 1838, quando foi solto.

Dionísio Ferreira da Costa. Banco, 22 anos, pintor. Preso em Belém pelo alferes Afonso de Albuquerque e Melo. Pelos relevantes serviços que prestou ao movimento rebelde, foi elevado ao posto de major e comandante do fortim, onde esteve até a entrada da força legal. Preso em Belém, foi remetido para bordo da corveta Defensora em julho de 1837. Morreu no Hospital Geral Militar em julho de 1838.

Domingos Antônio. Denunciado como o assassino do capitão de fragata inglês. Por esse serviço é que teria sido promovido a olheiro da alfândega. Quando foi preso, em sua casa foram encontrados gêneros roubados nas lojas da cidade e documentos que evidenciariam ter sido comandante do ponto do Benjamim e prestado relevantes serviços aos rebeldes. Preso em 14 de setembro de 1836, em Monforte. Faleceu ao desembarcar no porto de Belém.

Domingos Congo. Africano, preto, de 40 anos, foi preso na fazenda de sua senhora por uma patrulha de Jaguarari. Era escravo de Luiza de Vasconcelos quando se desligou da fazenda e se juntou aos rebeldes. Teria se tornado um condutor das armas e munições para Antônio Clemente Malcher e Lavor Papagaio. Preso, foi remetido para bordo da Defensora em abril de 1837. Solto cinco meses depois.

Eduardo Francisco Nogueira Angelim. Cearense, branco, 20 anos, casado, proprietário. Na sua ficha de aprisionamento foi anotado: “acusado por seis testemunhas, por ser o primeiro chefe dos que agrediram a capital e dela se apossaram, em agosto de 1835. Cooperou direta e indiretamente para assassínios, roubos, arrombamentos, incêndios, não só na mesma capital como em todos os lugares desta província. Acha-se acusado pelo juiz de paz de Ourém no depoimento de testemunhas que fez proceder. Acusado pelo juiz de paz de Barcarena de ter sido o primeiro que fulminou ajuntamento contra as autoridades e pelas mais acima e mais por chefe dos 9 dias de fogo da capital e por ter-se aclamado presidente. (Também processado pelo juiz de paz de Aicaraú, inclusive por testemunhas de vista.)”. Remetido para bordo da corveta Defensora em 30 de outubro de 1836, no dia seguinte foi mandado para a Fortaleza da Barra.

Espínola de Brito Falke. Branco, 20 anos, caixeiro. A denúncia o considera “um dos influentes rebeldes que no dia 7 de janeiro de 1835 entrou na conspiração das assassinadas autoridades legais e que pretendeu assassinar o alferes Alfonso de Albuquerque e Melo. Consta mais que na noite de 6 para 7 de janeiro de 1835 teve em sua casa uma reunião de homens e depois de mortas as autoridades se apresentou armado, comandando uma patrulha, e foi ao Trem para o tomar, andando sempre armado durante as revoluções que se seguiram a 20 e 21 de fevereiro e 18 de maio do ano” de 1836, no qual foi preso pelo alferes Alfonso. Foi para o Arsenal com bexiga em março de 1838. Teve alta dois meses depois e voltou para bordo. Foi seu último registro.

Eugênio Foles. Tratado oficialmente como “celerado”, de Igarapé-Miri, responsável por várias mortes. Seu filho, Ambrósio Henriques Foles, também era cabano, Preso, acabou sendo solto.

Felipe Eurico Xavier. Paraense, branco, 21 anos, solteiro, empregado público, estudante de gramática. Foi remetido para bordo da corveta Defensora em agosto de 1837. No mês seguinte passou para o brigue português Flor do Mar. Até ser mandado para Lisboa, ficou impedido de ir a terra. Seu destino ficou desconhecido.

Felipe Moreira. “No tempo dos cabanos apoderou-se de sete escravos, destruiu muitas roças e mesmo preso na viagem levantou-se com outros querendo se apossar das armas dos guardas que os acompanhavam”. Foi preso em março de 1837, onde morreu em agosto do mesmo ano.

Florêncio Silva Cravo do Amazonas. Paraense, branco, 36 anos, almoxarife. Preso em 1837 por espalhar “doutrinas incendiárias e subversivas” entre os povos do rio Capim, “promovendo ódios contra o chefe da província”. Em abril de 1838 fugiu da escolta que o levava para audiência com o presidente da província. Foi recapturado e internado no Hospital Geral Militar em maio de 1839. Seis meses depois foi autorizado a curar-se em casa.

Florentino dos Reis. Paraense, pardo, 28 anos. “Rebelde furioso e inquietador do serviço público”. Preso em 1836, morreu no mesmo ano.

Francisco Felisberto. Mulato livre, 20 anos, lavrador.  “Malvado de profissão”, assassinou o português Nicolau de Souza Leão e ameaçou com vergalho e palmatória a família do comandante do destacamento. Preso em maio de 1837, foi mantido na corveta Defensora até ser mandado para Pernambuco, em outubro de 1839.

Francisco Fernandes de Macedo. Branco, 52 anos, capitão reformado de 2ª linha. Preso em outubro de 1836, por ser considerado ajudante de ordens de Vinagre. Em março de 1839 teve alta no hospital e ficou preso no quartel do 5º batalhão de caçadores.

Francisco José da Silva Ramos. Cearense, branco, 25 anos, solteiro, tipógrafo.

Acusado de ter sido um dos “furiosos” assassinos do ex-presidente Lobo. Participou da reunião realizada no dia 4 de janeiro de 1835 no engenho de João Pedro Gonçalves Campos, na qual organizaram o ataque a Belém. Conseguira fugir para o Marajó enquanto era feita uma busca na casa de Abaetetuba do arcipreste Batista Campos, seu padrinho, para onde ele e outros levaram cinco “armas da nação”: três pistolas de alcance, um barril e uma lata grande com pólvora. Foi preso em Muaná e remetido para bordo da corveta Defensora em outubro de 1836. Solto em setembro de 1838.

Francisco Pedro Vinagre. Branco, 23 anos, casado, seringueiro. Logo que entrou em Belém com sua tropa de rebeldes, no dia 7 de janeiro de 1835, foi até a cadeia soltar os presos, seguindo para os quartéis, onde assassinou os alferes que lá estavam. Armou os presos e com eles foi assassinar as autoridades. Preso em 28 de junho (ou julho) de 1835, em Belém, pelo ajudante João de Paula Miranda, por ordem do ex-presidente, Manoel Jorge Rodrigues. A última anotação foi do seu envio para a Fortaleza da Barra em 31 de outubro de 1836.

Francisco Rodrigues dos Santos. Branco, 30 anos, lavrador.Comandou um ataque em Arari a um destacamento de 50 praças. Persuadiu-os a se render dizendo-lhes que nada lhes havia de acontecer; acreditaram e, depois de rendidos, foram desarmados, fechados em um quarto de casa segura e no dia seguinte fuzilados. O juiz de paz João Miguel e mais 12 homens da legalidade conseguiram escapar. Concluído o crime, os cabanos passaram à fazenda de Francisco Manoel Manso Manito, levando tudo que puderam colocar em uma canoa. Preso junho de 1836, no rio Capim. Na última referência estava no Arsenal de Guerra, em novembro de 1839.

Geraldo Francisco Nogueira “Gavião”, Cearense, branco, 22 anos marceneiro (carpinteiro). Integrou o primeiro ataque a Belém, seguido pelo de agosto de 1835. Pronunciado pelo juiz de paz de Barcarena como um dos primeiros chefes de Conde, Beja e Barcarena. Pronunciado pelo juiz de paz de Aicaraçu e acusado pelos mesmos crimes nos quais Vinagre e Eduardo foram incursos. E mais em Moju, Guajajrá-Miri, Miritipitinga, Acará, Bujaru e Beja. Foi comandante dos rebeldes do corpo de permanentes, da polícia do ponto do Porto do Sal. Remetido para bordo da corveta Defensora em 30 de outubro de 1836. Passou para a fortaleza da Barra no dia seguinte, de onde saiu em 22 de dezembro do mesmo ano. Recolhido à corveta Amazonas em 6 de abril de 1840.

Geraldo Francisco de Oliveira Vinagre. Branco, casado, 23 anos, carpinteiro (negociante). Nomeado por Eduardo Angelim, quando na presidência da província, como 1º comandante do corpo de guardas municipais permanentes, em 12 de março de 1836. Pronunciado como assassino e tenente-coronel comandante de expedições, participando em todos os crimes cometidos no tempo da rebelião, nos processos do 1º, 2º e 3º distrito de Belém, e no de Bujaru. Preso em 14 de maio de 1836, em Belém, pela força legal. Passou da corveta Regeneração para a corveta Defensora em 16 de junho de 1837. Recolhido à corveta Amazonas em 6 de abril de 1840.

Geraldo do Sacramento Júnior (filho de Lino José). Mulato, 30 anos, solteiro, carpinteiro. Foi administrador da mesa de diversas rendas nacionais no tempo do governo rebelde. Participou do ataque à vila da Vigia. Marchou depois para os matos próximos da capital, a esperar pelos outros rebeldes que, de Oeiras e Muaná, a eles se reuniram para atacar Belém, como o fizeram em 14 de agosto de 1835, dizendo muitas vezes que ele vinha defender sua pátria e extinguir os maçons e os caramurus. Preso em Belém, foi remetido para bordo da corveta Defensora em outubro de 1838. Solto em junho de 1839.

Personagens (2)

Continuo a publicar a seleção dos principais cabanos presos pela força imperial que combateu a cabanagem. Seus nomes constam da relação nominal dos rebeldes presos em 1836, contida nos códices 972, 973, 974, 1.130, 1.131 e 1.132 do Arquivo Público do Pará. Grifei alguns trechos mais importantes.

Antônio Leal, índio, de 30 anos, lavrador. Na ficha de prisão consta que se reuniu a outros rebeldes “em todos os ajuntamentos para praticarem todas as maldades e barbaridades que se tem cometido nesta Província, desde os acontecimentos de 8 de outubro de 1834 no Acará”. Andou à cata de José Ribeiro de Souza para assassiná-lo. Com esse intento, se uniu, em abril de 1835, a Geraldo Francisco Nogueira. Não encontrando Ribeiro, teria assassinado seu amigo, Crispim José d’Oliveira, em sua própria casa, “reduzindo-o a pedaços ainda semivivo”. Em agosto, participou do ataque e do saque a Belém. Quando as tropas de Andréa entraram na cidade, foi se apresentar ao comandante do rio Acará, “que o despediu em paz, depois de que, em pleno dia, na Fonte da Freguesia do mesmo Acará, a 21 do corrente agosto, ameaçou tirar a vida ao mencionado José Ribeiro de Souza”. Foi preso em agosto de 1836, enviado para a Defensora e em seguida para o hospital. Seu destino ficou ignorado.

Antônio Manoel Sanches de Brito (padre). Pronunciado pelo crime de intentar o assassínio do presidente da província. Remetido para bordo da corveta Defensora em janeiro de 1839, para ser conservado “em camarote da coberta, e incomunicável”. Em abril desse ano foi levado ao tribunal do júri, ficando na cadeia à disposição do juiz de direito do crime da comarca de Belém.

Antônio de Melo Garcia (“Estrela do Norte”), branco, 35 anos, escrivão do crime. Ex-major da extinta Guarda Nacional de Santarém, liderou a rebelião na vila. À frente dos guardas nacionais, que aclamaram o “capataz” Eduardo Angelim presidente da Província, “angariando os povos para a revolta, sendo móvel de todas as desgraças que sofreram as famílias honestas daquela vila, que reclamavam a prisão deste algoz da humanidade”. Preso na Prainha pelo capitão Raimundo Joaquim Pantoja. Foi remetido para bordo da corveta Defensora em dezembro de 1836. Andou pelo hospital e a cadeia pública de Belém. Foi solto em dezembro de 1839.

Antônio dos Santos Vasques. Português, branco, 22 anos, caixeiro. Foi caixeiro de José Agostinho, do Acará. Chegou a Belém quando Eduardo Angelim assumiu a presidência da província. Por saber escrever, tornou-se seu ajudante de ordens. Foi também tenente da 1ª companhia de guardas nacionais dos rebeldes. Remetido para bordo da Defensora em dezembro de 1836. Foi desembarcado dois anos depois, em setembro de 1838, entregue ao ajudante de ordens do presidente, incorporado à tropa e enviado para o Rio de Janeiro.

Baltazar dos Reis Pestana. Tapuio, 40 anos, lavrador. Reuniu gente no igarapé Itapiocana, em outubro de 1834, para atacar de surpresa o 2º comandante da guarda municipal, José Maria Nabuco de Araújo, que Baltazar mesmo assassinou, com mais 6 soldados. Estava preso e foi solto quando ocorreu o ataque de 7 de janeiro de 1835. Acompanhou Eduardo Angelim. Assumiu a chefia do ponto do igarapé Itapiocana, invadiu as fazendas de Joaquim Maciel, proprietário daquele distrito, que assassinaram. Mataram quase todos os proprietários do rio Acará, sua terra natal. Remetido para bordo da corveta Defensora em agosto de 1836, foi para o Hospital Geral e nele morreu em maio de 1839.

Bartolomeu José Vieira Cearense. Cearense, branco, 20 anos, tipógrafo. Declarava-se que matou o filho do marechal Jorge Rodrigues no dia em que os cabanos entraram em Belém. Participou, sob a liderança de Eduardo Angelim, do ataque à Vigia. Foi remetido para bordo em agosto de 1838. E solto em novembro de 1839.

Bernardino José da Costa. Índio, 20 anos, lavrador. Forçou Bernardino de Sena Pastana “a passar Carta de Liberdade” de sua escrava. Preso em Belém e mandado para a corveta Defensora em junho de 1836, onde morreu dois meses depois.

Bernardino de Sena. Preto cativo, 59 anos. Foi preso duas vezes. Na primeira, foi solto pelos cabanos e participou do ataque no dia 7 de janeiro de 1835, quando assassinou as autoridades. Foi solto graças a requerimento da sua senhora, Lina Joaquina de Mello a quem foi entregue, em agosto de 1836.

Boaventura José da Conceição. Mameluco, 29 anos, ourives. Teve uma trajetória movimentada e bem original. Preso em Belém quando Antônio Malcher era o presidente da província, em 28 de janeiro de 1835, foi remetido à disposição do presidente de Pernambuco, de onde seguiu para o Rio de Janeiro. Voltou ao Pará em 9 de abril de 1836, sendo novamente preso pelo comandante das forças navais na ilha de Tatuoca. Passou para a corveta Regeneração como grumete em 23 de outubro de 1836.

Bráulio Fernando. Índio, 20 anos, lavrador. Travou combate em Inhangi com tropa do governo legal, no qual morreram três guardas nacionais e um artilheiro do lanchão, e foram feridos 24 homens da tropa. Prendeu o português Antônio Guerra e José Paz, que o próprio Bráulio teria matado, assim como de haver morto artilheiro e o guarda nacional Crispim dos Anjos. Preso por paisanos julho de 1836, em Inhangapi, foi levado para bordo da Defensora, onde morreu, três meses depois.

Camilo José Moreira (Jacaracanga ou Jararaca). Cearense, mulato, solteiro, 41 anos, sem ofício. Um dos participantes da revolta do Acará. A mando de Antônio Malcher e em companhia de Angelim, teria assassinado o 2º comandante dos municipais permanentes, José Maria Nabuco. Foi também um dos que concorreu para o assassínio das primeiras autoridades da província em 7 de janeiro de 1835. Preso em fevereiro desse ano. Remetido da charrua Carioca para bordo da corveta Defensora em julho. Passou para o Arsenal da Marinha em março de 1839, onde trabalhou até agosto desse mesmo ano. A última informação na sua ficha é de que foi recolhido à corveta Amazonas em abril de 1840.

Cândido Antônio. Soldado que desertou do 4º batalhão de 1ª linha e amotinou o destacamento da ilha de Curuá, assassinando o seu comandante, o tenente João Pereira Alves. Tenteou fugir para o “estabelecimento dos franceses”. Foi preso em Macapá e remetido para bordo da corveta Defensora fevereiro de 1838. Em setembro foi entregue à autoridade civil para cumprir sentença.

Cândido José. Piauiense, mestiço, 20 anos, solteiro, soldado do 4º batalhão de 1ª linha. Preso a bordo da corveta Defensora em março de 1838 por crimes que teria praticado na ilha do Curuá. Em julho, foi ao quartel-general responder a conselho de guerra, sendo recolhido ao calabouço do 5º batalhão. Ainda no mesmo mês regressou para bordo depois de ter respondido ao conselho. Foi intimado da sentença “de pena última” proferida em juízo de justiça militar, em agosto. A partir daí o seu destino ficou ignorado.

Cosme Damião de Brito. Filho do administrador da Fazenda Nacional São Lourenço, Luiz Pereira de Brito, que era cabano. Com seu pai, participou dos roubos no rebanho da fazenda, em Soure. Foi preso com uma porção de gado roubado dias depois da estada da expedição na vila, em setembro de 1836. Teria morrido no hospital volante de Soure, um mês depois.

Personagens (1)

Publico a seguir uma seleção dos principais cabanos presos pela força imperial que combateu a cabanagem. Seus nomes constam da relação nominal dos rebeldes presos em 1836, contida nos códices 972, 973, 974, 1.130, 1.131 e 1.132 do Arquivo Público do Pará. Uma relação semelhante já saiu neste blog, mas resolvi republicá-la por ter feito algumas modificações e correções. Sairá também no blog principal, que vinha funcionando como uma edição diária do extinto Jornal Pessoal.

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Alexandre Antônio, mulato, 19 anos, alfaiate. A denúncia o aponta como “um terrível assassino, companheiro dos Vinagres”. Também como ladrão, porque roubou a casa de Luiz Valente do Couto, levando consigo 700 peças.

Amaro Paulo, preto, 18 anos, sem ofício. Era o sentinela das famílias brancas que Angelim conduzia. Morreu em 1937, a bordo da corveta Defensora.

Antônio Cândido, mameluco de 30 anos, era soldado do 5º Corpo de Caçadores quando desertou para se tornar “um dos exaltados cabanos, pelos crimes”. Assumiu o comando de uma força dos rebeldes que atacou a vila da Vigia em 23 de julho de 1835, matando e roubando. Depois foi para Belém, onde entrou no dia 14 de agosto, atirando contra a tropa do governo legal. Na cidade teria praticado “imensos roubos”. Invadiu em seguida o engenho de D. Maria Francisca, no rio Arari, “onde fez muitos estragos e roubos”, matando o morador Manoel do Rosário. Fez o mesmo nos sítios vizinhos, espancando os seus moradores. No ataque seguinte, ao sítio de Henriques José da Silva, no mesmo rio Arari, sofreu um ferimento que o deixou aleijado de uma das pernas.

Morreu em junho de 1837, a bordo da corveta Defensora.

Antônio Carbué, de 50 anos. Participou do ataque ao destacamento legal na fazenda Santo Antônio, onde foram mortos o capitão Lourenço Justiniano de Paiva, Manoel Vicente Gonçalves, Antônio Pastana, Joaquim Dias Guerreiro e outros cidadãos que estavam no local.

Antônio Faustino. Tornou-se comandante militar da Vila da Vigia quando começou a revolta e aí enfrentou o 1º batalhão de brigada de Pernambuco. Também foi major e comandante do Forte de Santo Antônio, em Belém. Nessa condição, teria assinado uma das mensagens que Eduardo Angelim dirigiu a Andréa, quando o brigadeiro estava em Arapiranga. Foi acusado de roubar casas e lojas em Belém e de ter cometido outros delitos junto com os cabanos. Morreu em maio de 1937 a bordo da corveta Defensora.

Antônio Manoel Gonçalves Meninea, branco, 29 anos, professor de primeiras letras. Era ajudante de ordens do Vinagre. Preso em julho de 1835, em Belém. Um ano depois foi levado para bordo da corveta Defensora. Em dezembro de 1839 foi para a cadeia pública. Não se sabe que destino final teve.

Antônio Joaquim, tapuio de 20 anos, carpinteiro. Serviu de ordenança, a Eduardo Angelim, com o posto de sargento. Morreu a bordo da corveta Defensora, em fevereiro de 1838.

Antônio Jorge, pardo, 30 anos, lavrador. Sua ficha diz que ele era “sócio de Agostinho Moreira e um dos seus confidentes, por ser muito influente nos roubos, incêndios e assassínios que se praticaram naquele tempo do dito Moreira”. A mando do seu chefe Moreira, Antônio e seu grupo foram à toca do rio Bujaru esperar o Correio, que vinha de Tatuoca com armamento e munições e o atacaram fortemente, tomando a canoa e parte das munições de guerra e toda carga. O mesmo grupo bateu um destacamento legal de 30 praças, matando sete homens, roubando seus “trastes de ouro”. Ele teria fuzilado o tenente Felipe Jaques de Almeida, o capitão Domingos e outros que foram também assassinados dentro do batelão dos Miranda, que estava no Guamá. Foi preso no distrito do rio Capim, pelo comandante geral Francisco Manso Metelo. Morreu na corveta Defensora 70 dias depois de chegar a bordo, em setembro de 1836.

Antônio José Francisco Leitão, tapuio sem ofício, tido como “chefe do cabanismo” em Almeirim e por ser um dos sublevados da escuna Guajará, onde assassinaram o 2º tenente comandante Souza Foi preso em Gurupá, em 1838.

Antônio José de Santana, mulato, lavrador. Era um dos cabanos que conduzia gado do Marajó para Eduardo Angelim em Belém. Foi preso em Soure, levado para bordo da corveta Defensora e depois para o hospital, de onde fugiu, com o sentinela, em outubro de 1836.