Família Pastana

Localizei oito integrantes da família Pastana no período da cabanagem. Cinco participaram da revolta popular. Três se mantiveram ao lado da legalidade. Os cabanos foram: Alberto Ferreira Pastana, Agostinho Ferreira Pastana, José Pastana, Estevão Pastana e Raimundo Pastana. Os legalistas eram: Joaquim Maciel Pastana, juiz de paz; Bernardino Pastana, dono da fazenda Paraíso, no Acará; e Bartolomeu da Silva Pastana.

Famílias: na cabanagem e hoje

Famílias que identifiquei no período da cabanagem, a partir do chefe ou cabeça, várias das quais continuam no Pará até hoje:

– Luiz Valente do Couto

– João Antônio Pereira de Faria Bona

– Antônio Dias Guerreiro / Joana Dias Guerreiro / Joaquim Dias Guerreiro

– André Cursino / José Cursino dos Dantos Nogueira

– José Romão da Costa

– Lobatos (de Igarapé-Miri)

– Barnabé Correia Feio / Raimundo Estácio Pereira Feio / Joaquim Pereira Feio

– Rosana Rosado Nascimento

– Carlos Antônio Gemaque / José Antônio Gemaque / Marcelo Gemaque

– Bernardo Gomes de Cantuária

– Coronel João de Araújo Rozo

– João Evangelista da Silva Porto

– Tomásia Pinheiro Lobo

– Estevão Fernandes da Ponte / João Ponte e Souza

– Manoel José Fragoso

– Luiz Calandrini / Maria Barbosa Calandrini

– Miguel Penalber

– João Remígio de Souza

– Joaquim José Lameira

– Joaquim Saraiva Palheta / Manoel José Palheta

– José do Carmo Barriga

– Major Francisco Sarges de Oliveira

– Antônio de Souza cavaleiro

– Tomás Nogueira Picanço

– Vitorino Serrão da Costa

– João Hilário Watrin

Inédito: poesia completa de Patroni de 1838

Filipe Alberto Patroni Maciel Parente tinha quase 40 anos quando, em 1838, escreveu o Poema Herói-Cômico, seu 9º livro por ordem cronológica de edição; O crítico e bibliófilo paulista Rubens Borba de Moraes, dono de um raríssimo exemplar, adquirido por José Mindlin e incorporada à sua famosa biblioteca, hoje na USP, em São Paulo, diz que o poema, de crítica a Feijó e à Regência, foi atribuído inicialmente a João Pinheiro Guimarães (Chico Petisca), escrito a pedido de Bernardo Vasconcelos. Logo se verificou, pelas iniciais do nome do suposto autor, que na verdade os versos rascantes, sátiros, cômicos e venenosos eram de Patroni, exatamente com as mesmas iniciais: F.A.P.M.M.P. — B. (Bacharel) formado. Em Coimbra.

A obra foi então incorporada a bibliografia do grande personagem da história do Pará e do Brasil. Durante algum tempo procurei por esse opúsculo, de apenas 23 páginas, que terminam do anúncio que se trata apenas do 1º Canto. O 2º nunca apareceu (ou deve estar entre os manuscritos inéditos ainda não publicados).

Essa primeira parte é de grande valor para a revelação da multifacetada personalidade de Patroni e de sua participação nos acontecimentos que precederam e sucederam a cabanagem. A revolta eclodiu três anos antes da publicação do poema e prosseguiram dois anos além. Dois anos depois do encerramento do “motim político”, Patroni voltou a Belém, indo depois definitivamente para Lisboa.

A leitura da obra dará elementos para uma nova análise sobre o pensamento de Patroni a respeito da escravidão, república, lideranças e a própria independência, seguida pelo Império. Um material tão rico e surpreendente que ofereço ao leitor, com o texto que atualizei. Acho que o texto está sendo publicado pela primeira vez.

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POEMA HERÓI-CÔMICO

O. D. C.

F. A. P. M. M. P. — B. formado

Aos Admiradores do Portentoso Instinto e dos Exms. e Rvms. Chichélos.

RIO DE JANEIRO. IMPRENSA AMERICANA DE I. P. DA COSTA.

RUA DO HOSPÍCIO N. 118.

1838.

Indica tigres agit rabidâ cum transgride pacem

Perpetuam; soevis inter se convenit ursía.

Juvenal Saty, 15 v.

O PESADELO.

CANTO PRIMEIRO.

ma noite, em que cheio de tristezas

No futuro da Pátria meditava,

Mal chega o sono, vejo em sonho, monstros,

Que ainda não fartos das traições, das mortes,

Que o solo Brasileiro tem manchado,

Deliberam nos meios de arrancar-lhe

O extremo alento, e de beber-lhe o sangue

  Estavam derredor de longa mesa

Gritando em confusão todos a um tempo,

Até que um deles, magro e macilento.

Semblante, onde os remorsos deixam rastros,

Ou faz estragos o licor da cana,

Bate na mesa, e a voz contrafazendo

Com a afetada brasileira pausa,

A canalha infernal à ordem chama.

  – ‘Meus Senhores, diz ele, hoje é preciso

Que dentre nós se escolha quem presida

Pra que os trabalhos marchem limpamente.

Se alguém quiser falar tem a palavra’ –

  Com voz de sovelão, com voz que mata,

Quem é esse galhardo cavalheiro

Que enceta a discussão?… Ah ! sim é ele,

O Duque do Catete, homem bizarro.

Que em todas as matérias é versado.

Não precisa estudar, basta que tome

Pitada de rapé de áurea boceta,

Para que a mente sua s’ ilumine.

Parece que o brilhante solitário,

Que traz no dedo, faz que o brilho entrando

Pelas ventas no cérebro reflita,

Em proporção da pedra, e seus quilates.

 – ‘Eu, diz ele, gostei sempre da ordem,

Sempre avante vai tudo, em que me meto:

Se órfãos estamos não é minha a culpa,

O nosso Herói de Itu sempre me teve

Por seu pilar mais forte; mas o Fado

Quis, que ele enfim dos seus desconfiando,

Se julgasse cercado de larápios,

E nos deixasse no melhor da festa,

Quando já tudo estava bem-disposto… 

(Apoiado! apoiado! gritam todos) .

Sim meus amigos tudo preparado

Já tinha o nosso Inca, ele que o diga,

Pois à honra nos faz de estar presente;

Mas voltando à questão voto, que fique

Presidindo à sessão o Irmão Antônio.’

  Já na ponta de um banco em movimento

Eu vejo um calvo bicho acaboclado,

Que é de testas coroadas descendente,

Fazendo contorções, momos e gestos

De fraldiqueiro, de macaco, ou gato.

Pede a palavra; mas, ó céus que é isto!

Quantas milhas por hora vai deitando!!…

De certo é por vapor que o bicho fala,

Correm-lhe as frases como seis cavalos.

(Atenção! atenção!) ei-lo falando:

 — ‘Também voto no mesmo Presidente,

Que o acho muito bom; porém desculpem

Se sono vos causar o meu discurso:

Minha balda é cansar os meus ouvintes;

Mas não posso deixar de importunar-vos

Visto o convite honroso, que recebo

Do mui nobre orador, que precedeu-me.

Gostosa ocasião hoje aproveito

Ante um Congresso tão ilustre e sábio

De dirigir-lhe as expressões sinceras

Do meu maior e agradecido afeto.

Pois Senhores sabei, que é este o homem

A quem eu devo a honra e a felicidade

De beijar os Chichelos Milagrosos

Do mortal, a quem chamam Pátarata

Profanos inda não iniciados,

Nos mistérios da Sacra-Chuchadeira.

Eu mesmo, meus Senhores, eu confesso

Quando, iludido, às vezes o chamava

De três caudas Bachá,

Ministro besta,

Hostil à Pátria, vil republiquista.

Porém não tenho pejo em declarar-vos

Que hoje estou, na minha alma, arrependido

Como passo a mostrar-vos neste instante…

(E nisto descalçando um dos sapatos,

Três sapatadas dá na própria boca,

Aonde deixa impressas claras provas

De ter andado aos muros encostado

Pisando em moles massas mal-cheirosas.)

‘Vós acabais de ver, ele prossegue,

Que a parte, que pecou foi castigada:

Quem seus crimes expia é inocente,

E pode entrada ter no Paraíso.

Julguei assim faltar, para que todos

Deixem sempre de estar desconfiados

De tudo quanto digo; é mofina

Que sempre me persegue. O meu amigo

O nobre preopinante ainda que li a pouco

Só estreitasse relações comigo,

De perto há muitos anos me conhece;

Juntos na Costa d’África estivemos,

Ambo s fizemos nossas travessuras:

A arte de piloto ele aprendia

Sem progressos fazer, sempre na mesma,

Apesar de levar calabrotadas…

Mui baixa era pra ele aquela esfera,

Pra coisas grandes tinha só nascido,

E ao destino do Céu ninguém se oponha.

Era eu cirurgião desses navios,

Cuja mercadoria é carne humana,

De que há pouco também fui advogado;

Mas Brandão, nesse tempo, eu me chamava

Pois ainda não linha descoberto

Os meus Brasões, a minha Alta Linhagem

E as árvores genealógicas, que tenho

Vindas lá da Ásia, da Etiópia e México.

Vamos porem ao ponto: é bem verdade,

Que o nosso Herói, o nosso Ilustre Bispo

Desamparou-nos no melhor da festa.

Escuso de fazer meus elogios

As provas vós as tendes, vós bem vistes,

Com que jeito mandei Bento Gonsalves,

O comando tomar dos nossos bravos

Livres irmãos do livre Rio-Grande;

E não achastes boa a descoberta,

De primeiro fazer, com que ele fosse

Iniciar os bons Baianos livres

Nos segredos da Nobre Camarilha,

Da qual era Sabino antigo membro

Quem melhor tal missão levar podia ?…

Indo de mais a mais encarregado

De dar o TRINTA-E-TRÊS , e d’enviar-me

A joia, que pertence por direito

Ao Grão Comendador, ao Delegado

Do Soberano Consistório Belga!

Mas como passam deste

Mundo as glórias!

O nosso Herói d’Itu, com mágoa o digo,

Que em muitos atos seus mostrava às vezes

Ter origem divina, finalmente

Mostrou-nos ser também de carne e osso,

Quando com feia ingratidão chamara

Aos seus amigos, corja de larápios…’

  ‘À ordem! (grita o filho-da-mãe benta,

O Padre Camarim, interrompendo

O discurso do Inca, e as roxas unhas

Já de tanto as morder vertiam o sangue!)

‘À ordem! continua — mente, zurra

Quem faltando ao respeito ao Bispo egrégio

Ousa chamá-lo ingrato!

Ah! que calúnia!

Ele que mesmo lá na Paulicéia

Está na Santa Causa trabalhando

Com mais vigor ainda, e mais afinco,

Do que desenvolveu aqui na Corte

Nesse trinta de Julho, que abortara !…

Na mesa estão as cartas de seu punho:

Vejam o que planos, e que intrigas machas

Sabido tem urdir com manha e tento

Não em São Paulo só, em todo o Império,

Aonde existem seus correspondentes,

Que seus Sacros Chichelos idolatram.

É isto ser ingrato ?!…

Não decerto: Mas vamos que algum dia algum sujeito

Lhe fosse a calva pôr de alguém à mostra,

E que ele convencido, e não podendo

O calvo defender, dissesse aflito,

(Para do falador tapar a boca,)

—Que cercado se achava de larápios,—

Tamanho caso é esse, e tão estranho,

Que acenda a bílis de quem tantas vezes

Com cara de vergalho tem ouvido

Graves imputações de gatunices,

Quer no mundo profano, ou no maçônico?

Mas já que estamos todos entre amigos,

Sem que alguém capaz seja de trair-nos,

E que um só monarquista não nos ouve,

Não teria razão esse homem santo

De se zangar às vezes, quando via

Que apenas recebia os ordenados,

Caíam nele as aves de rapina,

Os urubus, a quem mais afagava,

Que não contentes com ter casa franca

Ceia, almoço e jantar à barba longa,

 Despiam-lhe a gaveta e as algibeiras?

Com seu sagrado nome se cobrindo

As pobres partes um tributo impunha-o,

E às vezes quão pesado!…

Bem o pôde dizer o Magalhães Luso Ministro,

Que para conseguir nulo Tratado,

Sofreu na bolsa grande e limpo saque,

No qual também, confesso, tive rasca

Só por ódio, que tenho a portugueses.

Falando com franqueza, a ladroeira

Nunca esteve entre nós tão apurada!’…

(Aqui do orador e seus ouvintes

Duram cinco minutos as risadas.)

‘Foi sempre o nosso Bispo um santo homem.

Se ele pecou foi só por desmazelo,

Pois tudo o que era seu, dinheiro, roupa,

Trastes de casa, algumas joias-zinhas,

Rolavam a granel por toda a casa,

Dando trabalho ao bom do Malagrida

De apanhar e guardar quanto encontrava,

Mandando pôr em segurança em Minas;

E levando consigo, exceto as botas,

As ceroulas, e o mais só necessário

Pra viagem que o Bispo pretendia,

Abdicando, fazer ã Pátria cara.

Quem negar pode, que os empregos todos

Em mercado estiveram?

Quem duvida,

Que o bolorento imundo Piolhoso

Por corretagem ajustava os postos,

E as patentes em leilão vendia ?!…

E como hás de livrar-te

Inca sanhudo

Da provada arguição, quando Ministro,

De que chuchar querias trinta contos

Dos Irmãos da tua Loja, traficantes

De carne humana, a quem tu conhecendo

Por teres deles sido o advogado,

Mandaste pôr impedimento aos barcos;

De cada um dos donos exigindo

Só cinco contos para levantá-lo ?!…

Sabe-se até quem foram teus agentes

Da Roleta o Barão Lord Esporado,

Mas a melhor das tuas certamente,

Que ainda me faz rir, quando me lembro,

Foi quando com rompantes de Quixote

Ameaçaste o tímido adotivo,

Rico negociante, de obrigá-lo

Por justiça a te dar por noiva a filha:

Mandando de antemão o hábil mercúrio

Propor ao sogro, e seduzir a noiva,

Oferecendo lhe em dote—uma excelência,

Um carro, um permanente, e dois correios

Porem pra comissão de tal calibre

Outro melhor de certo não achavas,

Do que Vallongo, que já foi soldado,

Depois frade, e depois cura d’aldeia,

Mestre no seu ofício e jubilado;

Pois já quebrou as pernas na Bahia

Ao saltar da janela de um Mosteiro,

Quando o acharam seduzindo as freiras.

‘– Aqui a súcia toda os olhos fita

No destro ex-frade com sinais de espanto!

E em seguida três vozes diferentes de três sujeitos a palavra pedem.

—’ Tem a palavra, diz o Irmão Antônio,

(Presidente por todos aprovado)

Tem a palavra o nosso Irmão Roleta,

Que primeiro a pediu: os outros filiem

Quando a vez lhes tocar: ordem! Silêncio!’

Então alto, e membrudo cavalheiro,

Olhar de proteção, rodado, esbelto,

Liso e preto cabelo de tamoio,

Cara à republiqueta escanhoada,

Pondo-se todo em ar de capoeira,

(Que muitas cabeçadas no Rocio

Deu desde os doze anos até aos vinte)

Nestes termos prorrompe, e assim se explica:

 — ‘Se não fosse prezar a honra, e o brio,

Que de meus pais herdei, e de que tenho

Milhões de provas dado aos meus patrícios,

Aqui mesmo ensinava àquele biltre

Como se fala com respeito aos brancos.

Tratamos de aprovar um Presidente,

Vem nos trazendo historias tão sediças,

Sem tom nem som cantando a palinodia

Aos conspícuos varões, que mais se esmeram

Em vingar o seu Bispo, guerreando,

Contra os inimigos seus, os monarquistas.

Absorto estou de ouvir tal capadócio!

Mas a culpa Ele a tem, que só devera

Ente tão vil tratar, como merece.

Podia eu responder aos desaforos,

Que contra meus amigos expendera,

Mas não querendo emparelhar com ele,

Tudo entrego ao desprezo, de que é digno.’ –

  Nos ouvintes produzem tais palavras

Rumor e sensação: e o Presidente

Chamando-os ao silencio assim atalha

 —-‘Falai agora vós Lord Esporado.’—;

Já nos bicos dos pés, já de mil cores,

Chapéu a banda, e bengalão d’estoque,

Puxando os vinte quatro cabelinhos,

Que do beiço inferior crescem por baixo,

Ao que os tafues — de pera o nome deram

 O corpo endireitando, mas as pernas,

(Que grande pena!) cada vez mais zambras!

Compondo o rosto, que já foi sofrível,

Cujo retrato afirma, que as madamas

Do grande tom conservam nos seus quartos,

Mesmo embaixo da cama impresso em vasos,

E que antes fora tido pelo Marquês,

E por um hamburguês que o protegeram.

É este o orador, que já disposto,

A rouca e áspera voz lendo ensaiado,

Solta o dique ao chorrilho das asneiras,

Com frases, que de orelha tem pescado.

E dando uma pancada penetrante

Com o conto do bastão no pavimento,

— Tremeu a Terra; e a Lua de torvada

Um pouco a luz perdeu como enfiada!…

  -‘Sofrer não posso os chumbos, que introduzem

No meu Brasil as fezes africanas.

Inda ontem mesmo às barbas do Governo

Entraram dois navios com catinga,

Menoscabando as leis da Natureza,

Os preceitos humanos, e divinos,

E de mais os Tratados celebrados,

Que são contrários aos países cultos.

Inda bem que o Ministro da Inglaterra

Já muitas vezes tem me prometido,

Que empilhando os galegos traficantes,

Há de manda-los enforcar a todos;

Por isso me lembrei nos belos tempos,

Em que Ministro foi o sábio Inca,

De por impedimento aos tais barquinhos;

Para que ao menos caro eles pagassem,

Quando quisessem vê-lo levantado;

Par a que menos lucro eles tivessem

Fazendo escravo o nosso semelhante;

Para que nessa empresa esmorecendo

Só no Brasil entrassem braços livres.

  Assim portanto eu acho muito injusto,

E mesmo injusto o proceder daquele,

Que pretendeu lançar o odioso

Num inocente fato, e tão prudente,

Que só teve por fim o bem da Pátria;

Pois o sangue e dinheiro dos marotos

Nunca devem poupar os patriotas!…

Eles têm-me uma raiva, uma tal sede,

Que já querido têm assassinar-me,

E o fariam se não fosse o medo,

Que têm de mim, que sou do Rio Grande,

Aparentado nas primeiras casas.

Não da Província só, do Brasil todo,

Que antes do Império ser meus avoengos

Já condes tinham sido, e já marqueses.

Pois eu quando nasci na porta havia

Guarda de Capitão: e ninguém pense,

Que no corpo da guarda a luz eu visse.

Mas como ia dizendo, essa chumbada

Tem mais medo de mim, quando me avista.

De espada e de fardão armado em guerra,

Com dois AA., que o Manoel do Crucifixo

Mandou por distintivo pôr na gola,

(Por ser eu chefe dos Agarradores)

Do que se vissem o Junot entrando

Com seus franceses por Lisboa invicta…’

  — Aqui o Presidente o interrompendo,

Mas sem poder conter as gargalhadas

Tal conselho discreto lhe dirige:

– ‘Mylord calai-vos, basta; esse discurso

Já nos cheira a maçada, perdoai-me…

Pois já todos por tolo estão-vos tendo.

Não gasteis nosso tempo precioso

Com disparates tais fora dos eixos.

Saber latir nas praças e nos becos,

E na Alfândega mesmo, é mui diverso

De falar num Congresso tão distinto…,

Tem a palavra o nosso Irmão Vallongo.’—

  Vai devagar se erguendo um magro padre

Limpando o fedorento pus, que escorre de uma nojosa fistula no queixo, Sinal certo de espinhos, que encontrara

Colhendo, rosas nos jardins de Chipre;

E no cafre colega os olhos pondo

Tais palavras profere do imo peito

  —’Não sei que privilégios tem tal mono,

Para poder somente ser mercúrio,

E que não possa um outro a seus amigos

Um serviço fazer honesto e santo.

É verdade, que eu fui falar à noiva,

Que o Inca para esposa pretendia;

Mas tu infame… para fins lascivos

Ao teu Bispo levavas as moçoilas,

Que com lábia de serpe seduzias.

Toda a cidade sabe, que no dia,

Em que ele tomou posse do Alto Cargo,

De Pafos ninfas seis introduziste

No seu Palácio para o receberem

E lhe porem na rua um diadema

De flores na cabeça tonsurada.

Coroado o vi subir pelas escadas,

E pareceu-me ver Sardanapalo

De casaca redonda, e calções curtos,

Por suas concubinas festejado,

Tendo a ti por eunuco do Serralho;

Pois eu me achava então no Consistório

Conversando com o Inca na janela,

E ambos tendo observado a entremesada;

Depois de muito rir, nos persignamos.

Eu conheço não ter dom de palavra,

Pará contigo estar argumentando.

Matemática só, é o meu forte,

Mas já da Geometria eu não me lembro:

Se pudesse adivinhar hoje trazia

Para te responder meu douto filho,

Vindo formado a pouco de São Paulo,

Prodígio de saber, raro talento,

Grande rapaz, que a raça não desmente,

Bendito o ventre, em que ele foi gerado

Apesar de alguns zoilos, que se atrevem

A chamá-lo doutor de letras gordas,

Ah! maldito Governo, que não sabes

Os moços empregar esperançosos!!! ‘—

  Mal de falar acaba o bom Padreco,

Limpando os óculos a palavra pede

O ministro Chan-chan, bem conhecido

Pelas façanhas do Queixado anjinho:

E tendo o Irmã o Antônio consentido,

Fanhoso a declamar assim começa.

  — ‘Que é isto meus Senhores!… Que loucura

Se apoderou de Vossas Senhorias?!…

Estamos nós na casa dos orates?

Ou cada um de nós está borracho! ‘

Tudo tem seu lugar, tudo seu tempo!

Pelo que vejo creio, que aqui mesmo,

Saudosos das Orgias das Paineiras,

Vamos reproduzir as belas cenas

De carurus, e de imorais batuques,

Com que do nosso Bispo a hipocondria

Conseguimos curar naqueles bosques.

Digo isto porque observo o destempero,

Com que se fala aqui fora da ordem,

Fazendo garbo os nobres oradores

De nossas vidas pôr em pratos limpos.

Quem de nós não terá suas mazelas?

O seu fraco, o seu podre, uns mais ou menos?

E não pensem, que aqui vem mal trazidas

As nossas belas súcias das Paineiras,

Pois inda a pouco vi dois tabuleiros,

No s quais distinguir pude entre os mais pratos

Bazulaque, entrecosto, angu, linguiças,

E um cesto de garrafas da patrícia

Que é mais estomacal, e mais suave,

Do que quanto a zurrapa vem da Europa,

Licor para o verão e para o inverno,

Pois não só refrigera, como aquece;

Que o diga o nosso caro Presidente,

Que de cadeira pode falar nisto,

Já tendo há muitos anos alcançado

Na ordem do Deus Baco os graus mais altos

E trazendo na cara os atestados

Do grande zelo, e devoção ardente,

Com que se entrega do seu Deus ao Culto:

Pois de tanto exercício quase o vemos

Reduzido a espectro, ou lobisomem,

E se não fossem da Campanha as águas

Morrido tinha há muito em seu ofício.

  Mas que é isto Senhores?!… 

Quanto pode o mau exemplo, que me tendes dado!

Caí na mesma, em que vos censurava,

Entrando em digressões, nada dizendo

Da nossa reunião sobre o objeto,

E me tendo esquecido das ideias,

Que quando comecei tinha na mente,

Remédio não terei, senão sentar-me,

Ficando pra outra vez o meu discurso,

Que não devo acabar, sem que primeiro

Peça perdão por ter perdido o tino

Apenas vi o cesto e os tabuleiros,

Vindo aquele da casa do Travassos,

E este do empijoso Sern Vergonha,

Que ocasiões não perde de mostrar-nos

Quanto Nhã-nhã Ignez é prestimosa.’—

  Neste instante uma voz descompassada

Se deixa ouvir de dentro repetindo

— ‘Alto lá maganão, peço a palavra!’

E logo pela sala vem correndo

Vermelho figurão de meias roxas,

Calças de ganga, em mangas de camisa,

Prato na mão, toalha sobre os ombros,

Tendo estado ocupado em pôr a mesa

Na varanda interior, donde escutara.

O final do discurso apantojado.

E no meio da turba se mettendo

Exerce a língua que alugar costuma:

  — ‘Quem deu, diz ele, ao nobre preopinante

Autoridade de falar no nome

Da linda Ignez, que está posta em sossego

De seus anos colhendo doce fruto!?…

Deve-te ela, safado, algum a coisa?

Não te envergonhas de soltar motejos

Contra uma dama fraca e delicada,

Fraca e sem força só por ter sujeito

O coração a quem soube vencê-la?!…

Eu nunca te falei de teu anjinho,

A quem foste molhar dia de Entrudo

De dia, e de jaqueta, acompanhado

Duma algazarra, e chusma de moleques,

Saindo tu molhado, e besuntado

De asquerosas essências; pois tranquilo

Não esperando ele um tal ataque,

E sem pensar viesse àquelas horas

Sua Excelência, seu vizinho, e amigo,

Só cuida em defender-se, e atarantado

Lançando mão do que primeiro encontra,

U m vaso, que há dois dias trasbordava,

Todo vazou-te em cima da cabeça…

Dize, onde está teu alto rossinante,

Em que feito São Jorge empavezado,

Seguido pelos pobres ordenanças,

As ruas da Cidade atravessavas,

E muito mais as que vão dar ao Campo,

Só para visto ser, e cortejado

Pelas donzelas filhas de Cythera,

Com quem passar querias por bonito?!

Mas ah! Como o Diabo aos seus ajuda!

Um malvado, que mais comprometera

O Governo do nosso digno Bispo,

E que pelas infâmias de seus atos

Mais ridículo tomou nosso partido,

Foi quem teve o melhor quinhão no pilha,

Que ainda em paz consentem, que desfrute;

Porquanto a mim, que sou mais inocente,

Que só escrevo aquilo, que me ordena,

Sem ter ódio a ninguém, só combatendo

Em prol daquele, que melhor me paga,

(Qual soldado Suíço mercenário)

Mandarão-me à tábua, e me arrancarão

Meus nove mil cruzados tão chorados,

Sem que essa gente ao menos se lembrasse,

Que a minha casa é qual outro convento,

Onde das tentações do mundo livres

Sustento a muitas virgens brasileiras

A quem de pai ou de pastor eu sirvo.’—

  Então alto e bojudo orangotango,

Massa enorme do corpo como d’alma

Exalando bodum de agros suores,

Num curto fraque inglês emborjacado,

Limpando a larga, lisa e baça testa,

Pede a palavra, e já bufando exclama:

  — ‘Depois de tão ilustres oradores

Machos discursos terem repetido,

Eu não devo falar, sem que primeiro

Peça vênia por tal temeridade.

Mas como o que se quer são sentimentos,

E mais livres, que os meus ninguém ostenta,

Julguei portanto, que os meus votos dando,

Não deixasse jamais de motivá-los.

Sem ofensa fazer aos mais amigos

Pede a franqueza de um republicano,

Que eu declare, que o nosso Januário

Foi quem de todos mais me deu no goto,

Enchendo-me as medidas quanto disse,

Pois ninguém negar pôde, que os malvados,

Que mais temíveis maior guerra fazem, 

São aqueles, que têm melhor pitança,

E ainda fazem favor quando a recebem.

Pois eu, que há muito já vivi a quieto,

Arredado do mundo da Política,

Tendo tomado já muito juízo;

Que de meus interesses só cuidava,

Tratando de ganha r meus vintenzinhos,

Pra viver descansado na velhice,

Fui da Alfândega expulso a glória tendo

De saudosos deixar os despachantes,

E a quanto s tinham de tratar comigo;

Pois nunca houve chaveiro mais discreto,

Mai s afável, e tão acomodado.

Nestes termos portanto hoje estou pronto

Pra trabalhar na grande, e santa empresa

De derrubar aqueles, que me arrancam

Meu pão ganhado com suor do rosto,

Obrigando-me a ser de novo ourives.

E se eu não me lembrasse muita s vezes,

Que era de comissão o meu emprego,

Talvez por não me ter acautelado

Não tivesse hoje a Loja mais sortida,

Que antes do Dia Sete Glorioso,

Dia em que fui primeiro dos primeiros,

No qual, porque não quis, não fui Regente,

Pois eu só aspirava à Ditadura

Com um Governo, que fosse democrático.

  ‘— Apoiado! apoiado! Bravo! bravo! —

Por muito tempo todos repetiram;

Até que afinal o magro Presidente

A cadeira deixando, e nela pondo

Um dos da súcia, que mais perto estava,

No meio da cohue lugar tomando,

Qual D. João Tenorio branco e teso,

Com um tom de voz começa grave e horrendo:

  — ‘Deveis de ter sabido claramente,

Como é dos Fados grandes certo intento,

Que o varão, que conhece homens, e coisas,

Prestará o que deve à Pátria, um dia,

Que por ele se esqueçam os marrecos

De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

Já lhe foi, bem o vistes, concedido,

Com um poder tão singelo e tão pequeno,

O Governo empunhar do Grande Império,

Vasta extensão do Prata ao Amazonas.

Quando o Brasil pensou, que um curto padre

Vindo do mato havia governá-lo’…

Nós vimos o lnstinto portentoso,

Com que jurou no posto conservar-se,

Até que abandoná-lo lhe aprouvesse,

O que fez, dando ao Mundo um testemunho

De incoerente não ser, nem interesseiro;

E até pra conhecer se o nosso povo

Sabendo apreciar suas virtudes

Lhe dirigia súplicas ferventes,

Para que não fugisse enfadadinho,

E ficasse entre nós — pra bem de todos.

Mas como passam deste Mundo as glórias

(Como há pouco bem disse o sábio Inca.)

Ele que tinha já tudo arranjado,

Que promoções no Exército fizera,

E para Andaraí se retirara,

Das condições ali formando as bases

Para propor ao povo suplicante,

Que ele esperava recebesse alegre

De um Rozas de batina a férrea vara,

Por fim cansado já de esperar tanto,

Baldados vendo então nossos esforços,

Sem uma assinatura só pilharmos,

Mui caladinho foi-se escafedendo

Seguido só do preto cozinheiro,

Escanchado num burro lazarento;

E sem que um adeusinho lhe ditassem

As senhoritas, que o coroaram dantes:

Coisa já mui sabida entre tais ninfas,

Que só festejam quando esfolar podem

Porém Senhores convencido estando,

Que por dogmas tereis estas verdades,

Que acabo de expender, entro em matéria.

Meus Amigos! eu creio, que nós todos

Cuidamos só de nossos interesses,

Buscando meios de arranjar patacas,

Que a velhice passemos descarnados,

Como bem disse o nosso Irmão Rodrigues,

Com a franqueza dum republicano

Assim portanto tendo nós perdido

As posições, em que antes estivemos,

E nas quais de alguns nossos conseguimos

Por limpas os casacas, que eram sujas,

Devemos só tratar com mútuo acordo

De recobrar as posições perdidas,

De tudo usando, sem que importem meios,

Que lícitos serão, se triunfarmos;

Pois da guerra o direito, e as represálias

Moral, justiça, ou honra não conhecem.

Soltem-se as Fúrias todas lá do Averno, Traição, Calúnia, Intriga, Ódio e Vingança

E com raiva, com ferro e fogo e mortes

Saiam a campo, e só por nós combatam.

Perca-se tudo embora, a Pátria mesma,

Que não é Pátria, quando não mandamos!

Cada qual por seu lado vá minando,

Procure cada um novos adeptos,

Que venham o engrossar nossas fileiras,

Haja perseverança, haja concórdia,

Que há de a nossa facção ter a vitória

Nosso estandarte seja cor de sangue,

Dois ervados punhais nossa divisa,

E a palavra — DIOGO — a nossa senha.

Juremos meus Irmãos, juremos todos

Não afrouxar no meio desta luta,

E seja o nosso sacro juramento

Pelos Manes do Ilustre Zinzendorfe

O Fundador da Seita Moravita ! !. … ‘ —

Então todos seus braços estendendo,

Vozes de triple, baixo, e de contralto

Em altos sons gritarão. — Nós juramos!…

E neste instante dando meia noite,

Encerra-se a sessão, correndo todos

Para o lugar do cesto e tabuleiros,

Aos quais se lançam como gato a bofes.

  Foi quando então do sono despertando

Ia a cair de horror todo gelado,

Por efeito do grande pesadelo

Que minha alma oprimiu durante a noite.

O dia afugentou tão negro sonho

Que na memória impresso conservando

O consigno a papel, para que possa,

 Quando queira, contá-lo aos meus amigos ´

Até porque, segundo as velhas dizem,

 — Sonhos contados não se verificam.

F IM DO PRIMEIRO CANTO.