Localizei oito integrantes da família Pastana no período da cabanagem. Cinco participaram da revolta popular. Três se mantiveram ao lado da legalidade. Os cabanos foram: Alberto Ferreira Pastana, Agostinho Ferreira Pastana, José Pastana, Estevão Pastana e Raimundo Pastana. Os legalistas eram: Joaquim Maciel Pastana, juiz de paz; Bernardino Pastana, dono da fazenda Paraíso, no Acará; e Bartolomeu da Silva Pastana.
Mês: dezembro 2022
Famílias: na cabanagem e hoje
Famílias que identifiquei no período da cabanagem, a partir do chefe ou cabeça, várias das quais continuam no Pará até hoje:
– Luiz Valente do Couto
– João Antônio Pereira de Faria Bona
– Antônio Dias Guerreiro / Joana Dias Guerreiro / Joaquim Dias Guerreiro
– André Cursino / José Cursino dos Dantos Nogueira
– José Romão da Costa
– Lobatos (de Igarapé-Miri)
– Barnabé Correia Feio / Raimundo Estácio Pereira Feio / Joaquim Pereira Feio
– Rosana Rosado Nascimento
– Carlos Antônio Gemaque / José Antônio Gemaque / Marcelo Gemaque
– Bernardo Gomes de Cantuária
– Coronel João de Araújo Rozo
– João Evangelista da Silva Porto
– Tomásia Pinheiro Lobo
– Estevão Fernandes da Ponte / João Ponte e Souza
– Manoel José Fragoso
– Luiz Calandrini / Maria Barbosa Calandrini
– Miguel Penalber
– João Remígio de Souza
– Joaquim José Lameira
– Joaquim Saraiva Palheta / Manoel José Palheta
– José do Carmo Barriga
– Major Francisco Sarges de Oliveira
– Antônio de Souza cavaleiro
– Tomás Nogueira Picanço
– Vitorino Serrão da Costa
– João Hilário Watrin
Inédito: poesia completa de Patroni de 1838
Filipe Alberto Patroni Maciel Parente tinha quase 40 anos quando, em 1838, escreveu o Poema Herói-Cômico, seu 9º livro por ordem cronológica de edição; O crítico e bibliófilo paulista Rubens Borba de Moraes, dono de um raríssimo exemplar, adquirido por José Mindlin e incorporada à sua famosa biblioteca, hoje na USP, em São Paulo, diz que o poema, de crítica a Feijó e à Regência, foi atribuído inicialmente a João Pinheiro Guimarães (Chico Petisca), escrito a pedido de Bernardo Vasconcelos. Logo se verificou, pelas iniciais do nome do suposto autor, que na verdade os versos rascantes, sátiros, cômicos e venenosos eram de Patroni, exatamente com as mesmas iniciais: F.A.P.M.M.P. — B. (Bacharel) formado. Em Coimbra.
A obra foi então incorporada a bibliografia do grande personagem da história do Pará e do Brasil. Durante algum tempo procurei por esse opúsculo, de apenas 23 páginas, que terminam do anúncio que se trata apenas do 1º Canto. O 2º nunca apareceu (ou deve estar entre os manuscritos inéditos ainda não publicados).
Essa primeira parte é de grande valor para a revelação da multifacetada personalidade de Patroni e de sua participação nos acontecimentos que precederam e sucederam a cabanagem. A revolta eclodiu três anos antes da publicação do poema e prosseguiram dois anos além. Dois anos depois do encerramento do “motim político”, Patroni voltou a Belém, indo depois definitivamente para Lisboa.
A leitura da obra dará elementos para uma nova análise sobre o pensamento de Patroni a respeito da escravidão, república, lideranças e a própria independência, seguida pelo Império. Um material tão rico e surpreendente que ofereço ao leitor, com o texto que atualizei. Acho que o texto está sendo publicado pela primeira vez.
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POEMA HERÓI-CÔMICO
O. D. C.
F. A. P. M. M. P. — B. formado
Aos Admiradores do Portentoso Instinto e dos Exms. e Rvms. Chichélos.
RIO DE JANEIRO. IMPRENSA AMERICANA DE I. P. DA COSTA.
RUA DO HOSPÍCIO N. 118.
1838.
Indica tigres agit rabidâ cum transgride pacem
Perpetuam; soevis inter se convenit ursía.
Juvenal Saty, 15 v.
O PESADELO.
CANTO PRIMEIRO.
ma noite, em que cheio de tristezas
No futuro da Pátria meditava,
Mal chega o sono, vejo em sonho, monstros,
Que ainda não fartos das traições, das mortes,
Que o solo Brasileiro tem manchado,
Deliberam nos meios de arrancar-lhe
O extremo alento, e de beber-lhe o sangue
Estavam derredor de longa mesa
Gritando em confusão todos a um tempo,
Até que um deles, magro e macilento.
Semblante, onde os remorsos deixam rastros,
Ou faz estragos o licor da cana,
Bate na mesa, e a voz contrafazendo
Com a afetada brasileira pausa,
A canalha infernal à ordem chama.
– ‘Meus Senhores, diz ele, hoje é preciso
Que dentre nós se escolha quem presida
Pra que os trabalhos marchem limpamente.
Se alguém quiser falar tem a palavra’ –
Com voz de sovelão, com voz que mata,
Quem é esse galhardo cavalheiro
Que enceta a discussão?… Ah ! sim é ele,
O Duque do Catete, homem bizarro.
Que em todas as matérias é versado.
Não precisa estudar, basta que tome
Pitada de rapé de áurea boceta,
Para que a mente sua s’ ilumine.
Parece que o brilhante solitário,
Que traz no dedo, faz que o brilho entrando
Pelas ventas no cérebro reflita,
Em proporção da pedra, e seus quilates.
– ‘Eu, diz ele, gostei sempre da ordem,
Sempre avante vai tudo, em que me meto:
Se órfãos estamos não é minha a culpa,
O nosso Herói de Itu sempre me teve
Por seu pilar mais forte; mas o Fado
Quis, que ele enfim dos seus desconfiando,
Se julgasse cercado de larápios,
E nos deixasse no melhor da festa,
Quando já tudo estava bem-disposto…
(Apoiado! apoiado! gritam todos) .
Sim meus amigos tudo preparado
Já tinha o nosso Inca, ele que o diga,
Pois à honra nos faz de estar presente;
Mas voltando à questão voto, que fique
Presidindo à sessão o Irmão Antônio.’
Já na ponta de um banco em movimento
Eu vejo um calvo bicho acaboclado,
Que é de testas coroadas descendente,
Fazendo contorções, momos e gestos
De fraldiqueiro, de macaco, ou gato.
Pede a palavra; mas, ó céus que é isto!
Quantas milhas por hora vai deitando!!…
De certo é por vapor que o bicho fala,
Correm-lhe as frases como seis cavalos.
(Atenção! atenção!) ei-lo falando:
— ‘Também voto no mesmo Presidente,
Que o acho muito bom; porém desculpem
Se sono vos causar o meu discurso:
Minha balda é cansar os meus ouvintes;
Mas não posso deixar de importunar-vos
Visto o convite honroso, que recebo
Do mui nobre orador, que precedeu-me.
Gostosa ocasião hoje aproveito
Ante um Congresso tão ilustre e sábio
De dirigir-lhe as expressões sinceras
Do meu maior e agradecido afeto.
Pois Senhores sabei, que é este o homem
A quem eu devo a honra e a felicidade
De beijar os Chichelos Milagrosos
Do mortal, a quem chamam Pátarata
Profanos inda não iniciados,
Nos mistérios da Sacra-Chuchadeira.
Eu mesmo, meus Senhores, eu confesso
Quando, iludido, às vezes o chamava
De três caudas Bachá,
Ministro besta,
Hostil à Pátria, vil republiquista.
Porém não tenho pejo em declarar-vos
Que hoje estou, na minha alma, arrependido
Como passo a mostrar-vos neste instante…
(E nisto descalçando um dos sapatos,
Três sapatadas dá na própria boca,
Aonde deixa impressas claras provas
De ter andado aos muros encostado
Pisando em moles massas mal-cheirosas.)
‘Vós acabais de ver, ele prossegue,
Que a parte, que pecou foi castigada:
Quem seus crimes expia é inocente,
E pode entrada ter no Paraíso.
Julguei assim faltar, para que todos
Deixem sempre de estar desconfiados
De tudo quanto digo; é mofina
Que sempre me persegue. O meu amigo
O nobre preopinante ainda que li a pouco
Só estreitasse relações comigo,
De perto há muitos anos me conhece;
Juntos na Costa d’África estivemos,
Ambo s fizemos nossas travessuras:
A arte de piloto ele aprendia
Sem progressos fazer, sempre na mesma,
Apesar de levar calabrotadas…
Mui baixa era pra ele aquela esfera,
Pra coisas grandes tinha só nascido,
E ao destino do Céu ninguém se oponha.
Era eu cirurgião desses navios,
Cuja mercadoria é carne humana,
De que há pouco também fui advogado;
Mas Brandão, nesse tempo, eu me chamava
Pois ainda não linha descoberto
Os meus Brasões, a minha Alta Linhagem
E as árvores genealógicas, que tenho
Vindas lá da Ásia, da Etiópia e México.
Vamos porem ao ponto: é bem verdade,
Que o nosso Herói, o nosso Ilustre Bispo
Desamparou-nos no melhor da festa.
Escuso de fazer meus elogios
As provas vós as tendes, vós bem vistes,
Com que jeito mandei Bento Gonsalves,
O comando tomar dos nossos bravos
Livres irmãos do livre Rio-Grande;
E não achastes boa a descoberta,
De primeiro fazer, com que ele fosse
Iniciar os bons Baianos livres
Nos segredos da Nobre Camarilha,
Da qual era Sabino antigo membro
Quem melhor tal missão levar podia ?…
Indo de mais a mais encarregado
De dar o TRINTA-E-TRÊS , e d’enviar-me
A joia, que pertence por direito
Ao Grão Comendador, ao Delegado
Do Soberano Consistório Belga!
Mas como passam deste
Mundo as glórias!
O nosso Herói d’Itu, com mágoa o digo,
Que em muitos atos seus mostrava às vezes
Ter origem divina, finalmente
Mostrou-nos ser também de carne e osso,
Quando com feia ingratidão chamara
Aos seus amigos, corja de larápios…’
‘À ordem! (grita o filho-da-mãe benta,
O Padre Camarim, interrompendo
O discurso do Inca, e as roxas unhas
Já de tanto as morder vertiam o sangue!)
‘À ordem! continua — mente, zurra
Quem faltando ao respeito ao Bispo egrégio
Ousa chamá-lo ingrato!
Ah! que calúnia!
Ele que mesmo lá na Paulicéia
Está na Santa Causa trabalhando
Com mais vigor ainda, e mais afinco,
Do que desenvolveu aqui na Corte
Nesse trinta de Julho, que abortara !…
Na mesa estão as cartas de seu punho:
Vejam o que planos, e que intrigas machas
Sabido tem urdir com manha e tento
Não em São Paulo só, em todo o Império,
Aonde existem seus correspondentes,
Que seus Sacros Chichelos idolatram.
É isto ser ingrato ?!…
Não decerto: Mas vamos que algum dia algum sujeito
Lhe fosse a calva pôr de alguém à mostra,
E que ele convencido, e não podendo
O calvo defender, dissesse aflito,
(Para do falador tapar a boca,)
—Que cercado se achava de larápios,—
Tamanho caso é esse, e tão estranho,
Que acenda a bílis de quem tantas vezes
Com cara de vergalho tem ouvido
Graves imputações de gatunices,
Quer no mundo profano, ou no maçônico?
Mas já que estamos todos entre amigos,
Sem que alguém capaz seja de trair-nos,
E que um só monarquista não nos ouve,
Não teria razão esse homem santo
De se zangar às vezes, quando via
Que apenas recebia os ordenados,
Caíam nele as aves de rapina,
Os urubus, a quem mais afagava,
Que não contentes com ter casa franca
Ceia, almoço e jantar à barba longa,
Despiam-lhe a gaveta e as algibeiras?
Com seu sagrado nome se cobrindo
As pobres partes um tributo impunha-o,
E às vezes quão pesado!…
Bem o pôde dizer o Magalhães Luso Ministro,
Que para conseguir nulo Tratado,
Sofreu na bolsa grande e limpo saque,
No qual também, confesso, tive rasca
Só por ódio, que tenho a portugueses.
Falando com franqueza, a ladroeira
Nunca esteve entre nós tão apurada!’…
(Aqui do orador e seus ouvintes
Duram cinco minutos as risadas.)
‘Foi sempre o nosso Bispo um santo homem.
Se ele pecou foi só por desmazelo,
Pois tudo o que era seu, dinheiro, roupa,
Trastes de casa, algumas joias-zinhas,
Rolavam a granel por toda a casa,
Dando trabalho ao bom do Malagrida
De apanhar e guardar quanto encontrava,
Mandando pôr em segurança em Minas;
E levando consigo, exceto as botas,
As ceroulas, e o mais só necessário
Pra viagem que o Bispo pretendia,
Abdicando, fazer ã Pátria cara.
Quem negar pode, que os empregos todos
Em mercado estiveram?
Quem duvida,
Que o bolorento imundo Piolhoso
Por corretagem ajustava os postos,
E as patentes em leilão vendia ?!…
E como hás de livrar-te
Inca sanhudo
Da provada arguição, quando Ministro,
De que chuchar querias trinta contos
Dos Irmãos da tua Loja, traficantes
De carne humana, a quem tu conhecendo
Por teres deles sido o advogado,
Mandaste pôr impedimento aos barcos;
De cada um dos donos exigindo
Só cinco contos para levantá-lo ?!…
Sabe-se até quem foram teus agentes
Da Roleta o Barão Lord Esporado,
Mas a melhor das tuas certamente,
Que ainda me faz rir, quando me lembro,
Foi quando com rompantes de Quixote
Ameaçaste o tímido adotivo,
Rico negociante, de obrigá-lo
Por justiça a te dar por noiva a filha:
Mandando de antemão o hábil mercúrio
Propor ao sogro, e seduzir a noiva,
Oferecendo lhe em dote—uma excelência,
Um carro, um permanente, e dois correios
Porem pra comissão de tal calibre
Outro melhor de certo não achavas,
Do que Vallongo, que já foi soldado,
Depois frade, e depois cura d’aldeia,
Mestre no seu ofício e jubilado;
Pois já quebrou as pernas na Bahia
Ao saltar da janela de um Mosteiro,
Quando o acharam seduzindo as freiras.
‘– Aqui a súcia toda os olhos fita
No destro ex-frade com sinais de espanto!
E em seguida três vozes diferentes de três sujeitos a palavra pedem.
—’ Tem a palavra, diz o Irmão Antônio,
(Presidente por todos aprovado)
Tem a palavra o nosso Irmão Roleta,
Que primeiro a pediu: os outros filiem
Quando a vez lhes tocar: ordem! Silêncio!’
Então alto, e membrudo cavalheiro,
Olhar de proteção, rodado, esbelto,
Liso e preto cabelo de tamoio,
Cara à republiqueta escanhoada,
Pondo-se todo em ar de capoeira,
(Que muitas cabeçadas no Rocio
Deu desde os doze anos até aos vinte)
Nestes termos prorrompe, e assim se explica:
— ‘Se não fosse prezar a honra, e o brio,
Que de meus pais herdei, e de que tenho
Milhões de provas dado aos meus patrícios,
Aqui mesmo ensinava àquele biltre
Como se fala com respeito aos brancos.
Tratamos de aprovar um Presidente,
Vem nos trazendo historias tão sediças,
Sem tom nem som cantando a palinodia
Aos conspícuos varões, que mais se esmeram
Em vingar o seu Bispo, guerreando,
Contra os inimigos seus, os monarquistas.
Absorto estou de ouvir tal capadócio!
Mas a culpa Ele a tem, que só devera
Ente tão vil tratar, como merece.
Podia eu responder aos desaforos,
Que contra meus amigos expendera,
Mas não querendo emparelhar com ele,
Tudo entrego ao desprezo, de que é digno.’ –
Nos ouvintes produzem tais palavras
Rumor e sensação: e o Presidente
Chamando-os ao silencio assim atalha
—-‘Falai agora vós Lord Esporado.’—;
Já nos bicos dos pés, já de mil cores,
Chapéu a banda, e bengalão d’estoque,
Puxando os vinte quatro cabelinhos,
Que do beiço inferior crescem por baixo,
Ao que os tafues — de pera o nome deram
O corpo endireitando, mas as pernas,
(Que grande pena!) cada vez mais zambras!
Compondo o rosto, que já foi sofrível,
Cujo retrato afirma, que as madamas
Do grande tom conservam nos seus quartos,
Mesmo embaixo da cama impresso em vasos,
E que antes fora tido pelo Marquês,
E por um hamburguês que o protegeram.
É este o orador, que já disposto,
A rouca e áspera voz lendo ensaiado,
Solta o dique ao chorrilho das asneiras,
Com frases, que de orelha tem pescado.
E dando uma pancada penetrante
Com o conto do bastão no pavimento,
— Tremeu a Terra; e a Lua de torvada
Um pouco a luz perdeu como enfiada!…
-‘Sofrer não posso os chumbos, que introduzem
No meu Brasil as fezes africanas.
Inda ontem mesmo às barbas do Governo
Entraram dois navios com catinga,
Menoscabando as leis da Natureza,
Os preceitos humanos, e divinos,
E de mais os Tratados celebrados,
Que são contrários aos países cultos.
Inda bem que o Ministro da Inglaterra
Já muitas vezes tem me prometido,
Que empilhando os galegos traficantes,
Há de manda-los enforcar a todos;
Por isso me lembrei nos belos tempos,
Em que Ministro foi o sábio Inca,
De por impedimento aos tais barquinhos;
Para que ao menos caro eles pagassem,
Quando quisessem vê-lo levantado;
Par a que menos lucro eles tivessem
Fazendo escravo o nosso semelhante;
Para que nessa empresa esmorecendo
Só no Brasil entrassem braços livres.
Assim portanto eu acho muito injusto,
E mesmo injusto o proceder daquele,
Que pretendeu lançar o odioso
Num inocente fato, e tão prudente,
Que só teve por fim o bem da Pátria;
Pois o sangue e dinheiro dos marotos
Nunca devem poupar os patriotas!…
Eles têm-me uma raiva, uma tal sede,
Que já querido têm assassinar-me,
E o fariam se não fosse o medo,
Que têm de mim, que sou do Rio Grande,
Aparentado nas primeiras casas.
Não da Província só, do Brasil todo,
Que antes do Império ser meus avoengos
Já condes tinham sido, e já marqueses.
Pois eu quando nasci na porta havia
Guarda de Capitão: e ninguém pense,
Que no corpo da guarda a luz eu visse.
Mas como ia dizendo, essa chumbada
Tem mais medo de mim, quando me avista.
De espada e de fardão armado em guerra,
Com dois AA., que o Manoel do Crucifixo
Mandou por distintivo pôr na gola,
(Por ser eu chefe dos Agarradores)
Do que se vissem o Junot entrando
Com seus franceses por Lisboa invicta…’
— Aqui o Presidente o interrompendo,
Mas sem poder conter as gargalhadas
Tal conselho discreto lhe dirige:
– ‘Mylord calai-vos, basta; esse discurso
Já nos cheira a maçada, perdoai-me…
Pois já todos por tolo estão-vos tendo.
Não gasteis nosso tempo precioso
Com disparates tais fora dos eixos.
Saber latir nas praças e nos becos,
E na Alfândega mesmo, é mui diverso
De falar num Congresso tão distinto…,
Tem a palavra o nosso Irmão Vallongo.’—
Vai devagar se erguendo um magro padre
Limpando o fedorento pus, que escorre de uma nojosa fistula no queixo, Sinal certo de espinhos, que encontrara
Colhendo, rosas nos jardins de Chipre;
E no cafre colega os olhos pondo
Tais palavras profere do imo peito
—’Não sei que privilégios tem tal mono,
Para poder somente ser mercúrio,
E que não possa um outro a seus amigos
Um serviço fazer honesto e santo.
É verdade, que eu fui falar à noiva,
Que o Inca para esposa pretendia;
Mas tu infame… para fins lascivos
Ao teu Bispo levavas as moçoilas,
Que com lábia de serpe seduzias.
Toda a cidade sabe, que no dia,
Em que ele tomou posse do Alto Cargo,
De Pafos ninfas seis introduziste
No seu Palácio para o receberem
E lhe porem na rua um diadema
De flores na cabeça tonsurada.
Coroado o vi subir pelas escadas,
E pareceu-me ver Sardanapalo
De casaca redonda, e calções curtos,
Por suas concubinas festejado,
Tendo a ti por eunuco do Serralho;
Pois eu me achava então no Consistório
Conversando com o Inca na janela,
E ambos tendo observado a entremesada;
Depois de muito rir, nos persignamos.
Eu conheço não ter dom de palavra,
Pará contigo estar argumentando.
Matemática só, é o meu forte,
Mas já da Geometria eu não me lembro:
Se pudesse adivinhar hoje trazia
Para te responder meu douto filho,
Vindo formado a pouco de São Paulo,
Prodígio de saber, raro talento,
Grande rapaz, que a raça não desmente,
Bendito o ventre, em que ele foi gerado
Apesar de alguns zoilos, que se atrevem
A chamá-lo doutor de letras gordas,
Ah! maldito Governo, que não sabes
Os moços empregar esperançosos!!! ‘—
Mal de falar acaba o bom Padreco,
Limpando os óculos a palavra pede
O ministro Chan-chan, bem conhecido
Pelas façanhas do Queixado anjinho:
E tendo o Irmã o Antônio consentido,
Fanhoso a declamar assim começa.
— ‘Que é isto meus Senhores!… Que loucura
Se apoderou de Vossas Senhorias?!…
Estamos nós na casa dos orates?
Ou cada um de nós está borracho! ‘
Tudo tem seu lugar, tudo seu tempo!
Pelo que vejo creio, que aqui mesmo,
Saudosos das Orgias das Paineiras,
Vamos reproduzir as belas cenas
De carurus, e de imorais batuques,
Com que do nosso Bispo a hipocondria
Conseguimos curar naqueles bosques.
Digo isto porque observo o destempero,
Com que se fala aqui fora da ordem,
Fazendo garbo os nobres oradores
De nossas vidas pôr em pratos limpos.
Quem de nós não terá suas mazelas?
O seu fraco, o seu podre, uns mais ou menos?
E não pensem, que aqui vem mal trazidas
As nossas belas súcias das Paineiras,
Pois inda a pouco vi dois tabuleiros,
No s quais distinguir pude entre os mais pratos
Bazulaque, entrecosto, angu, linguiças,
E um cesto de garrafas da patrícia
Que é mais estomacal, e mais suave,
Do que quanto a zurrapa vem da Europa,
Licor para o verão e para o inverno,
Pois não só refrigera, como aquece;
Que o diga o nosso caro Presidente,
Que de cadeira pode falar nisto,
Já tendo há muitos anos alcançado
Na ordem do Deus Baco os graus mais altos
E trazendo na cara os atestados
Do grande zelo, e devoção ardente,
Com que se entrega do seu Deus ao Culto:
Pois de tanto exercício quase o vemos
Reduzido a espectro, ou lobisomem,
E se não fossem da Campanha as águas
Morrido tinha há muito em seu ofício.
Mas que é isto Senhores?!…
Quanto pode o mau exemplo, que me tendes dado!
Caí na mesma, em que vos censurava,
Entrando em digressões, nada dizendo
Da nossa reunião sobre o objeto,
E me tendo esquecido das ideias,
Que quando comecei tinha na mente,
Remédio não terei, senão sentar-me,
Ficando pra outra vez o meu discurso,
Que não devo acabar, sem que primeiro
Peça perdão por ter perdido o tino
Apenas vi o cesto e os tabuleiros,
Vindo aquele da casa do Travassos,
E este do empijoso Sern Vergonha,
Que ocasiões não perde de mostrar-nos
Quanto Nhã-nhã Ignez é prestimosa.’—
Neste instante uma voz descompassada
Se deixa ouvir de dentro repetindo
— ‘Alto lá maganão, peço a palavra!’
E logo pela sala vem correndo
Vermelho figurão de meias roxas,
Calças de ganga, em mangas de camisa,
Prato na mão, toalha sobre os ombros,
Tendo estado ocupado em pôr a mesa
Na varanda interior, donde escutara.
O final do discurso apantojado.
E no meio da turba se mettendo
Exerce a língua que alugar costuma:
— ‘Quem deu, diz ele, ao nobre preopinante
Autoridade de falar no nome
Da linda Ignez, que está posta em sossego
De seus anos colhendo doce fruto!?…
Deve-te ela, safado, algum a coisa?
Não te envergonhas de soltar motejos
Contra uma dama fraca e delicada,
Fraca e sem força só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la?!…
Eu nunca te falei de teu anjinho,
A quem foste molhar dia de Entrudo
De dia, e de jaqueta, acompanhado
Duma algazarra, e chusma de moleques,
Saindo tu molhado, e besuntado
De asquerosas essências; pois tranquilo
Não esperando ele um tal ataque,
E sem pensar viesse àquelas horas
Sua Excelência, seu vizinho, e amigo,
Só cuida em defender-se, e atarantado
Lançando mão do que primeiro encontra,
U m vaso, que há dois dias trasbordava,
Todo vazou-te em cima da cabeça…
Dize, onde está teu alto rossinante,
Em que feito São Jorge empavezado,
Seguido pelos pobres ordenanças,
As ruas da Cidade atravessavas,
E muito mais as que vão dar ao Campo,
Só para visto ser, e cortejado
Pelas donzelas filhas de Cythera,
Com quem passar querias por bonito?!
Mas ah! Como o Diabo aos seus ajuda!
Um malvado, que mais comprometera
O Governo do nosso digno Bispo,
E que pelas infâmias de seus atos
Mais ridículo tomou nosso partido,
Foi quem teve o melhor quinhão no pilha,
Que ainda em paz consentem, que desfrute;
Porquanto a mim, que sou mais inocente,
Que só escrevo aquilo, que me ordena,
Sem ter ódio a ninguém, só combatendo
Em prol daquele, que melhor me paga,
(Qual soldado Suíço mercenário)
Mandarão-me à tábua, e me arrancarão
Meus nove mil cruzados tão chorados,
Sem que essa gente ao menos se lembrasse,
Que a minha casa é qual outro convento,
Onde das tentações do mundo livres
Sustento a muitas virgens brasileiras
A quem de pai ou de pastor eu sirvo.’—
Então alto e bojudo orangotango,
Massa enorme do corpo como d’alma
Exalando bodum de agros suores,
Num curto fraque inglês emborjacado,
Limpando a larga, lisa e baça testa,
Pede a palavra, e já bufando exclama:
— ‘Depois de tão ilustres oradores
Machos discursos terem repetido,
Eu não devo falar, sem que primeiro
Peça vênia por tal temeridade.
Mas como o que se quer são sentimentos,
E mais livres, que os meus ninguém ostenta,
Julguei portanto, que os meus votos dando,
Não deixasse jamais de motivá-los.
Sem ofensa fazer aos mais amigos
Pede a franqueza de um republicano,
Que eu declare, que o nosso Januário
Foi quem de todos mais me deu no goto,
Enchendo-me as medidas quanto disse,
Pois ninguém negar pôde, que os malvados,
Que mais temíveis maior guerra fazem,
São aqueles, que têm melhor pitança,
E ainda fazem favor quando a recebem.
Pois eu, que há muito já vivi a quieto,
Arredado do mundo da Política,
Tendo tomado já muito juízo;
Que de meus interesses só cuidava,
Tratando de ganha r meus vintenzinhos,
Pra viver descansado na velhice,
Fui da Alfândega expulso a glória tendo
De saudosos deixar os despachantes,
E a quanto s tinham de tratar comigo;
Pois nunca houve chaveiro mais discreto,
Mai s afável, e tão acomodado.
Nestes termos portanto hoje estou pronto
Pra trabalhar na grande, e santa empresa
De derrubar aqueles, que me arrancam
Meu pão ganhado com suor do rosto,
Obrigando-me a ser de novo ourives.
E se eu não me lembrasse muita s vezes,
Que era de comissão o meu emprego,
Talvez por não me ter acautelado
Não tivesse hoje a Loja mais sortida,
Que antes do Dia Sete Glorioso,
Dia em que fui primeiro dos primeiros,
No qual, porque não quis, não fui Regente,
Pois eu só aspirava à Ditadura
Com um Governo, que fosse democrático.
‘— Apoiado! apoiado! Bravo! bravo! —
Por muito tempo todos repetiram;
Até que afinal o magro Presidente
A cadeira deixando, e nela pondo
Um dos da súcia, que mais perto estava,
No meio da cohue lugar tomando,
Qual D. João Tenorio branco e teso,
Com um tom de voz começa grave e horrendo:
— ‘Deveis de ter sabido claramente,
Como é dos Fados grandes certo intento,
Que o varão, que conhece homens, e coisas,
Prestará o que deve à Pátria, um dia,
Que por ele se esqueçam os marrecos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
Já lhe foi, bem o vistes, concedido,
Com um poder tão singelo e tão pequeno,
O Governo empunhar do Grande Império,
Vasta extensão do Prata ao Amazonas.
Quando o Brasil pensou, que um curto padre
Vindo do mato havia governá-lo’…
Nós vimos o lnstinto portentoso,
Com que jurou no posto conservar-se,
Até que abandoná-lo lhe aprouvesse,
O que fez, dando ao Mundo um testemunho
De incoerente não ser, nem interesseiro;
E até pra conhecer se o nosso povo
Sabendo apreciar suas virtudes
Lhe dirigia súplicas ferventes,
Para que não fugisse enfadadinho,
E ficasse entre nós — pra bem de todos.
Mas como passam deste Mundo as glórias
(Como há pouco bem disse o sábio Inca.)
Ele que tinha já tudo arranjado,
Que promoções no Exército fizera,
E para Andaraí se retirara,
Das condições ali formando as bases
Para propor ao povo suplicante,
Que ele esperava recebesse alegre
De um Rozas de batina a férrea vara,
Por fim cansado já de esperar tanto,
Baldados vendo então nossos esforços,
Sem uma assinatura só pilharmos,
Mui caladinho foi-se escafedendo
Seguido só do preto cozinheiro,
Escanchado num burro lazarento;
E sem que um adeusinho lhe ditassem
As senhoritas, que o coroaram dantes:
Coisa já mui sabida entre tais ninfas,
Que só festejam quando esfolar podem
Porém Senhores convencido estando,
Que por dogmas tereis estas verdades,
Que acabo de expender, entro em matéria.
Meus Amigos! eu creio, que nós todos
Cuidamos só de nossos interesses,
Buscando meios de arranjar patacas,
Que a velhice passemos descarnados,
Como bem disse o nosso Irmão Rodrigues,
Com a franqueza dum republicano
Assim portanto tendo nós perdido
As posições, em que antes estivemos,
E nas quais de alguns nossos conseguimos
Por limpas os casacas, que eram sujas,
Devemos só tratar com mútuo acordo
De recobrar as posições perdidas,
De tudo usando, sem que importem meios,
Que lícitos serão, se triunfarmos;
Pois da guerra o direito, e as represálias
Moral, justiça, ou honra não conhecem.
Soltem-se as Fúrias todas lá do Averno, Traição, Calúnia, Intriga, Ódio e Vingança
E com raiva, com ferro e fogo e mortes
Saiam a campo, e só por nós combatam.
Perca-se tudo embora, a Pátria mesma,
Que não é Pátria, quando não mandamos!
Cada qual por seu lado vá minando,
Procure cada um novos adeptos,
Que venham o engrossar nossas fileiras,
Haja perseverança, haja concórdia,
Que há de a nossa facção ter a vitória
Nosso estandarte seja cor de sangue,
Dois ervados punhais nossa divisa,
E a palavra — DIOGO — a nossa senha.
Juremos meus Irmãos, juremos todos
Não afrouxar no meio desta luta,
E seja o nosso sacro juramento
Pelos Manes do Ilustre Zinzendorfe
O Fundador da Seita Moravita ! !. … ‘ —
Então todos seus braços estendendo,
Vozes de triple, baixo, e de contralto
Em altos sons gritarão. — Nós juramos!…
E neste instante dando meia noite,
Encerra-se a sessão, correndo todos
Para o lugar do cesto e tabuleiros,
Aos quais se lançam como gato a bofes.
Foi quando então do sono despertando
Ia a cair de horror todo gelado,
Por efeito do grande pesadelo
Que minha alma oprimiu durante a noite.
O dia afugentou tão negro sonho
Que na memória impresso conservando
O consigno a papel, para que possa,
Quando queira, contá-lo aos meus amigos ´
Até porque, segundo as velhas dizem,
— Sonhos contados não se verificam.
F IM DO PRIMEIRO CANTO.