Um paraense singular

Escrevi o artigo reproduzido a seguir, em 1992, quando do lançamento do livro de Felipe Patroni, editado por Haroldo Maranhão, que se tornou uma raridade.

Pode-se escolher uma das duas datas para as comemorações, mas em ambas há um único personagem principal: o acaraense Filippe (ou Felipe, na forma atualizada) Alberto Patroni Martins Maciel Parente. A 6 de janeiro de 1821 ele se tornou o primeiro paraense a imprimir um jornal, a Gazeta do Pará, que circulou em Lisboa. No ano seguinte ele comprou uma gráfica na capital portuguesa, a transportou para Belém e a 22 de maio de 1822, colocou nas ruas da cidade o primeiro jornal rigorosamente paraense, com o exato título de O Paraense.

Apesar da passagem dos 170 anos [hoje, 183 anos] dessa data, a única perspectiva de espantar a desmemória local está no pequeno novo livro editado por Haroldo Maranhão no Rio de Janeiro, contendo dois textos de Patroni: a Dissertação sobre o direito de caçoar e a Carta a Salvador Rodrigues do Couto, por ele escritos na primeira maturidade, entre 1817 e 1818. Haroldo escreveu a introdução e montou a mais completa bibliografia disponível de Patroni. Também acrescentou uma ilustrativa cronologia ao livro, coeditado pela Loyola e a Giordano. É o 11º volume da coleção Memória.

Patroni foi muita coisa na vida, precocemente e com intensidade furiosa, limítrofe de um desequilíbrio que foi avançando em seu cérebro pelo peso dos anos e a irrealização das utopias. Esteve na contramão dos seus contemporâneos, rompeu os grilhões das classificações convencionais e foi uma personalidade tão rica e contraditória que até hoje sua vida fascinante continua à espera de um biógrafo à altura dele.

Nenhum tem se aproximado mais dessa meta do que Haroldo Maranhão. Diante da dificuldade para tratar um material primário caoticamente disperso e fontes secundárias deficientes, Haroldo optou por uma ficção a meio caminho do romance “à cléf” para exaltar Patroni e transcendê-lo em Cabelos no coração, livro que pertence à solitária dinastia das realizações literárias de grande porte. O romance, entretanto, não é exatamente – nem sobretudo – biografia romanceada, mas a obra capital de um escritor experimental com raízes fortemente fincadas na sua terra, acometido por uma terçã vocabular benigna, um paludismo inventivo, sem freios e fronteiras.

Os dois textos de Patroni, em si mesmos, são incapazes de traduzir completamente o pensamento do seu autor. Mas são um avanço considerável em relação à desleixada reunião das duas “obras escolhidas” pelo Conselho Estadual de Cultura. É também mais um passo dado por Haroldo Maranhão para suprir uma das maiores lacunas na historiografia regional.

É fascinante a trajetória de um humilde caboclo do interior paraense, que consegue chegar à famosa Universidade de Coimbra, faz um curso brilhante até o bacharelato, assume a representação do seu Estado junto à corte, é poliglota, domina uma vasta série de temas, assume uma militância política solitária, desafia convenções e percorre uma trajetória acidentada até sucumbir à apoplexia, a mesma doença que fulminaria um mês depois sua única companheira de vida, sem deixar sucessores.

Meu primeiro contato com Patroni foi aos 17 anos, quando escrevi reportagem de página inteira para a capa do segundo caderno de A Província do Pará. Eu não sabia que a ideia até então dominante sobre Patroni era de que ele não passava de um louco.Depois de ler alguns manuscritos e jornais no Arquivo Público, fiquei fascinado por aquele homem, especialmente pelo jornalista. O editor do jornal, Cláudio Leal, muito mais velho, mesmo condicionado pelos preconceitos vigentes, achou que aquela era uma nova roupagem para o mito e deu destaque à matéria, uma surpresa para mim, um convite à curiosidade insatisfeita.

Insatisfeitos ainda devem estar todos os que se interessaram não apenas em saber da vida de Patroni, mas buscar-lhe um sentido, uma definição. Nos intervalos em que foi juiz, advogado, político e pensador, ele foi jornalista. Além da Gazeta do Pará e de O Paraense, foi editor de mais três jornais. Na imprensa paraense, contudo, ele não foi mais do que precursor: três dias depois de O Paraense circular, foi preso. A partir daí, o cônego Batista Campos, um verdadeiro panfletário, assumiu a direção do jornal. Que linha editorial teria seguido o jornal se seu fundador permanecesse em liberdade?

Perguntas desse tipo cabem em vários momentos da vida de Patroni, marcada mais pela intensidade dos momentos do que por sua continuidade, por impulsos de lucidez interrompidos por um desequilíbrio (ou uma desorganização?) mental, que se iria acentuar com o tempo.

Politicamente, ele foi também um precursor, cujas ideias avançadas em relação ao rompimento da dependência colonial e da instauração da república eram convicção mesmo, mal expostas debaixo de uma bem cuidada preocupação tática, que mantinha sua cabeça sobre o seu tronco, ou era oportunismo? Para ele, bastaria ao Pará se atualizar à monarquia constitucional portuguesa do que aventurar-se por uma independência claudicante?

São perguntas que o tempo só responderá se autores menos condicionados por versões forem atrás das respostas. Elas não virão enquanto homenagens forem prestadas a Patroni apenas para cumprir obrigações formais, como dando o seu nome a uma praça ou editando obras que, escritas após 1850, são, antes de mais nada, o atestado do delírio de uma mente vulcânica obrigada a pensar numa planície acomodada.

BREVE ANTOLOGIA

Selecionei trechos do texto e da carta de Felipe Patroni que Haroldo Maranhão divulgou no livro. Ajudam a entender melhor o autor do que as obras reunidas pelo Conselho Estadual de Cultura, da fase de maior transtorno mental de Patroni. Antes, uma judiciosa e lúcida apreciação de Haroldo que situa melhor o grande personagem da história paraense, que antecedeu a cabanagem e, em certa medida, a antecipou.

ANÁLISE DE
HAROLDO MARANHÃO

Uma das virtudes que singularizam Patroni é a obsessão pelo trabalho intelectual. Conhecia na intimidade o grego, o latim e o sânscrito. Recitava no romano, velozmente, os livros da Bíblia e os quatro Evangelhos. Chegou a redigir jornais bissemanais, ele só, da primeira à última páginas. Foi jornalista e advogado militante no Pará, em Minas e na Corte, magistrado, deputado na Legislatura de 1842 logo dissolvida e patriota a vida inteira.

Desenvolveu incessante atuação política. Diversas vezes o encarceraram, no Brasil e em Lisboa.

Não sem desencanto, li na terra dele e minha que morreu mergulhado na completa loucura. Prefiro esperar por diagnóstico menos frívolo, quando a vida e obra tiverem sido exaustivamente esquadrinhadas por especialistas, isto é, historiadores, algebristas, físicos, numerologistas, ocultistas, demonólogos, biblistas, cabalistas, e sabe-se mais por quem.

Entristecido com a pátria a que integralmente se doara; com o desconhecimento de seus livros e de suas ideias voltadas para o bem do Brasil; com a irrisão que o rodeava, mudou-se em 1851 para Lisboa, com a mulher, Maria Anna, união sem filhos. Faleceu no dia 16 de julho de 1866 [talvez aos 77 anos], sem ter retornado ao seu país. A viúva não lhe sobreviveu mais que um mês e dias. Ambos morreram de apoplexia.

TEXTOS DE
PATRONI (1817/18)

*DE QUE SERVE o sábio encerrado em uma gruta? A sabedoria é inútil na solidão.
• É IMPOSSÍVEL haver sabedoria verdadeira, quando falta o conhecimento dos próprios deveres.
• OS NOVATOS logo no princípio têm o nome de Calouros, termo derivado do verbo caleo, que significa estar quente; e não sem razão, porque os Calouros estão em contínuo calor, ficando enfiados por qualquer coisa, donde vem o adágio: Ficar encalourado. Perdida a essência de Calouro ao matricular-se em a Universidade, começa o Acadêmico a ser Novato e a familiarizar-se com os Veteranos; decorre o ano e no fim dele quase não é caçoado e geralmente já então não há caçoada.
• FICAR ADVERTIDO de que o vasto império do Brasil todo ele é um tesouro; ele é um tesouro; porém está oculto; é preciso pôr toda a diligência para o descobrir.
• [Narra as jornadas de Francisco Caldeira Castelo Branco para fundar Belém,] à qual dá o nome de Grão-Pará, por uma equivocação, pois supunha que o Rio que banha a frente da Cidade era o Amazonas; e desta sorte deixa-a no mesmo lugar em que hoje está, com a invocação de Nossa Senhora de Belém, e dando-lhe o título de Cabeça da feliz Lusitânia.
• A INDOLÊNCIA, que todos reconhecem ser propriedade nossa, não provém doutra causa senão da rudeza em que vivemos: no Pará muitos há cujos espíritos se fossem cultivados teriam de florescer muito. De que serve que um rapaz muito ativo suceda no regime de sua casa a seu pai se ele, começando a sua carreira por casar, gasta toda a vida em plantar mandioca, arroz, milho e algodão, sem adiantar mais cousa alguma? Nasce, vive e morre estúpido: de que serve tal atividade? Ficam os filhos, único fruto das suas diligências e têm outra semelhante vida. E assim sucede uma série de ativos inúteis e prevalece a indolência.
• DESGRAÇA certamente lamentável é a nossa, que podendo aumentar o nosso País, servindo-nos das suas produções, por nossa negligência o diminuímos, queimando as suas riquezas. Sendo tão vasta a extensão dos nossos bosques, por que razão nos servimos das andirobeiras para lenha?

O livro da neta de Angelim

Para Gonçalves Dias, o cearense Eduardo Nogueira Angelim foi “o tipo do brasileiro mais perfeito”. O poeta maranhense pretendia dedicar-lhe uma “gloriosa epopeia”, mas nunca esse plano tomou forma escrita. Apesar de toda sua importância, o líder da cabanagem mereceu até hoje apenas uma biografia, escrita por sua bisneta, Dilke Barbosa Rodrigues (A vida singular de Angelim, Pongetti, Rio de Janeiro, 1936). O livro nunca foi reeditado, se transformando em raridade bibliográfica. Não pelo seu valor intrínseco, mas por sua circunstância de produto único.

O esforço de Dilke é convencer seu leitor de que Angelim foi um intelectual e o verdadeiro líder político da revolta que eclodiu em Belém,, em 7 de janeiro de 1835, e terminou no Amazonas, em 1840, com a anistia aos revoltosos dada pelo imperador Pedro II. Segundo ela, seu bisavô leu bastante e tinha ideias avançadas para o seu tempo, que tentou por em prática durante a rebelião, sem sucesso. Seus sonhos foram desfeitos em violência e sangue no fragor das lutas entre cabanos e as tropas legais.
Dilke tenta compor a figura de um herói sem mácula e projetá-lo como um mito, o maior do seu tempo. Parece querer compensar os dois volumes que Angelim escreveu no exílio com seu testemunho sobre tudo que viveu. Os originais do livro se perderam em Fernando de Noronha, onde Angelim.

Como o livro de Dilke é singular, conforme diz o título, vale a pena anotar algumas das observações mais originais que ela faz, como uma contribuição da família – sujeita às limitações desse tipo de análise, mas de valia para a compreensão do personagem.
Pela ótica de Dilke, a predestinação de Angelim seria precoce. Ele tinha 12 anos quando houve a grande seca de 1827 no Nordeste. Apesar de tão novo, teria sido ele quem sugeriu que a família se retirasse do Ceará e fosse no rumo da Amazônia, se estabelecendo no Acará.

Trabalhando como guarda-livros (contador) numa casa comercial em Belém, conseguiu juntar dinheiro suficiente para arrendar terras do coronel Félix Clemente Malcher, às margens do rio Acará, uma das regiões mais importantes do Pará, com suas plantações e engenhos de cana de açúcar. Já era um proprietário rural e pequeno burguês quando se casou com Luiza Clara, a jovem viúva de um rico comerciante português (seu segundo marido), que algumas pessoas diziam ter sido morto por Angelim, o que ele sempre negou.

Luiza Clara casou pela primeira vez quando tinha 15 anos com um militar. Enviuvou precocemente e dois anos depois era a mulher de Angelim, seu terceiro marido. Do casamento resultaram sete filhos: Maria, América, Brasília, Pelópidas, Epaminondas e Filomena Clara. A união com Luiza Clara o modificara. “Imerso em sonhos de amor e tranquilidade, Angelim afastara-se do local político e somente chamado voltava a socorrer os amigos”.

Cultivou amizade muito forte com o irmão Geraldo, o primeiro da família a se engajar em movimentos contra a ordem estabelecida. Mas se recusou a aceitar os primeiros convites para segui-lo. Aos 19 anos, sua única preocupação era desenvolver seu talento e crescer. Já acumulava algumas economias e em pouco tempo estaria em condições de viajar, percorrer centros de cultura. Seu tempo se dividia entre o trabalho, o trato das suas terras e os estudos.

A neta assegura que ele leu Aristóteles e estava a par das ideias do filósofo grego sobre a construção da república. Numa de suas proclamações, citou o escritor francês René Chateaubriand: “Não se deve servir a um governo para que sustentar a ordem precisa oprimir a liberdade e para manter a esta se expõe e cai em anarquia”.

Mas na tarde de abril de 1833, quando chegou à loja para trabalhar, já o aguardavam algumas pessoas, dentre elas seu irmão, Geraldo. Vinham convidá-lo para chefiar o movimento que iriam desencadear. Ficou surpreso pela iniciativa, mas imediatamente aceitou. A neta diz que Angelim mudou de comportamento, deixando de recusar ao chamado, por ver a oportunidade de realizar seus projetos: liberdade dos escravos, mudança de regime na corte, independência do domínio estrangeiro.

Um desenho feito por ele tinha um índio atirando uma flecha em direção ao sol, no ocaso, significando o brasileiro livre, exterminando a monarquia e criando a nação dos Estados Unidos da América do Sul. No entanto, a própria Dilke admite que o bisavô só não aceitava escravos e mulheres na sua tropa, porque “lhe afiguravam fraqueza, e os fracos não devem lutar”. Uma das várias contradições aparentes de Angelim.

Sua participação na revolta de abril de 1833, na qual as forças do comerciante Afonso de Jales contra as do presidente, Machado d’Oliveira, foi tal nesse primeiro combate, por sua bravura, que ganhou o apelido de Angelim, madeira amazônica muito rija, que nunca mais deixou de usar. O irmão, igualmente valente, passou a ser Geraldo Gavião.Mas não aceitou o comando das armas, que lhe ofereceu Félix Malcher, primeiro presidente cabano, porque não foi proclamada a abolição da escravatura. Não quis nem assinar as atas de reconhecimento de Malcher como presidente. Seus companheiros ficaram desconfiados e insatisfeitos.

Quando Malcher foi deposto (e morto em seguida), Angelim se recusou a substituí-lo. “Foi o único homem de bem que conheci”, diria Malcher antes da deposição e morte. Francisco Vinagre assumiu e foi então que Angelim decidiu atuar politicamente.
Se a massa dos cabanos não tivesse se mantido em atividade, a cabanagem teria sido extinta durante o governo do marechal Jorge Rodrigues. Os líderes admitiram que eles já não comandavam as ações e nada fizeram para ampliá-las. O retorno de Angelim ao comando foi mais consequência da pressão da massa do que iniciativa da liderança.

Quando o marechal chegou a Belém, os líderes lhe entregaram imediatamente “a capital de que se achavam de posse, seus terrenos e todo o material de guerra”, conforme o próprio Angelim informaria na sua proclamação aos paraenses, em 29 de junho de 1835.

O novo presidente prendeu então Vinagre e mais de 300 paraenses. Angelim foi outra vez procurado e reagiu com uma proclamação convidando os paraenses a pegar em armas e fazer “guerra de morte” ao marechal.

Ele foi aclamado presidente em 26 de agosto de 1835. Tinha 21 anos. Foi o 13º administrador do Pará, o melhor de todos, segundo alguns autores. No poder, “pretendeu levar de frente as reivindicações da província, sob as quais assentavam seus ideais liberais, que pretendia dar corpo, mas preferiu entregar o Pará à lei que, na verdade, sempre a estimou”, observa Dilke.

Ela diz que a cabanagem arruinou Angelim, que perdeu todos os bens que conseguira acumular. Com seu dinheiro, pagou o funcionalismo e alimentou a população.
Ele ficou preso na Fortaleza da Barra de 1837 a 1840. Foi mandado para o Rio de Janeiro e libertado. Presente em uma sessão da câmara dos deputados, deu vivas a Antonio Carlos de Andrada. Chamado à atenção, continuou a se manifestar, foi preso ao sair do paço da câmara. Ficou em Fernando de Noronha de 1841 a 1851. Sem processo. Soltaram-no em 5 de maio de 1852. Passou por Recife e seguiu viagem de volta a Belém, onde chegou a 13 de maio.

Luiza Clara morreu em 1878 e ele em 1882, aos 67 anos. Antes de morrer, quase afônico, pediu que abrissem as janelas que davam para o rio. Morreu no sítio Madre de Deus. “Deus seja comigo”, foram suas últimas palavras. Eram 11 horas de 20 de julho.