Teses de jornalista revisam a história

O jornalista paraense Sérgio Buarque de Gusmão lançou em São Paulo, onde mora há 45 anos, Nova Historia da Cabanagem – seis teses revisam a insurreição que incendiou o Grão-Pará em 1835, em edição (com 374 páginas) por ele mesmo assumida. É um livro que pode provocar debates fecundos entre os paraenses e as pessoas que acompanham essa que foi a maior revolta do império e das maiores da história brasileira.

Como convite à leitura do livro, reproduzo um texto escrito por José Carlos Ruy, em seguida, o meu, que serviu de prefácio ao livro, e o do autor. Espero que renovem a discussão sobre o tema.

 

Texto de José Carlos Ruy

 

A Cabanagem – levante popular que conflagrou o Grão-Pará na segunda metade da década de 1830 – é um episódio da história da luta popular no Brasil envolvido em inúmeros mitos. E que são agora enfrentados em Nova Historia da Cabanagem – seis teses revisam a insurreição que incendiou o Grão-Pará em 1835, de autoria do jornalista e historiador Sérgio Buarque de Gusmão.

O livro, que acaba de ser lançado, examina em profundidade a bibliografia existente (que já é farta, embora repetitiva) sobre a Cabanagem, e compara suas informações com documentos existentes nos arquivos públicos do Pará. A larga experiência jornalística do autor é visível na linguagem clara e direta que o livro revela. Não há exercícios retóricos ou metodológicos mas a intenção de comunicar aos leitores as ideias nele discutidas, sem qualquer artificialismo. E sem deixar de lado o necessário rigor científico que uma empreitada dessa natureza exige.

Esse rigor que une as atividades do historiador e do jornalista é o firme e constante respeito ao fato – acontecido no presente ou no passado longínquo mas documentados da forma mais precisa possível. “Convém ponderar que História (e Jornalismo, o ofício do autor) dependem do fato”, diz Sérgio na Nota do autor que abre o livro. “A interpretação é essencial para dar sentido contextualizado ao fato, expressão que dá visibilidade ao acontecimento”. Mas ela, insiste, “ainda que oxigenada por teorias e métodos mais elucidativos, é escrava do fato”.

Com base nesse rigor factual, ele desmonta inúmeros mitos e interpretações subjetivas daquele acontecimento histórico central não apenas para a história da Amazônia mas sobretudo brasileira dadas as contradições que enfrentou há quase dois séculos.

Um desses mitos diz respeito ao número de mortos repetido à exaustão pela historiografia, que fala em 30.000 a 40.000. A rebelião, e a repressão contra ela, foram sanguinárias e cruéis, não pode haver dúvida. Mas o exame da documentação e da bibliografia, a soma das perdas em batalhas e confrontos, não autoriza aquele número que, assegura Sérgio, “é fruto de exercício da arte divinatória”.

Há ainda a consideração do caráter daquela luta. Motim, revolta, revolução, levante – estas foram algumas das maneiras tradicionalmente usadas para definir a Cabanagem. Muitos disseram que houve desorientação entre os cabanos, que não teriam um programa. Tiveram; foi “o das lideranças, executado a ferro e fogo”, diz ele.

Sérgio Buarque de Gusmão mostra que o programa da insurreição popular – que envolveu desde grandes fazendeiros até índios, negros e o povo pobre – pode ser definido como democrático (era contra o despotismo vigente) e de libertação nacional (defendia a independência, contra o domínio português, e rejeitou influências estrangeiras).

A história da luta popular, democrática e nacional no Brasil precisa estar baseada nos fatos para que as interpretações que inspiram tenha efetividade nos enfrentamentos cotidianos do presente. Esta talvez seja a grande lição que Sérgio Buarque extrai dos acontecimentos ocorridos no Grão Pará. A amplitude daquela luta foi extensa – vai desde os enfrentamentos pela Independência, em 1822-1823, até a derrota final e sangrenta da Cabanagem, no final da década de 1840. E foi uma luta cujo programa não pode ficar preso aos sonhos e fantasias de seus intérpretes atuais – por mais bem intencionados que sejam. A verdade é revolucionária – este é um truísmo muito repetido. E. quando se conta a história, a verdade precisa estar amparada rigorosamente nos fatos. Apenas sendo assim é que a atividade de contar a história faz com que a história que realmente acontece entre os homens caminhe para frente.

 

Meu texto

 

Sérgio Roberto Buarque de Gusmão pertence a uma geração de jornalistas que já ultrapassaram a marca dos 60 anos, ainda com energia e sem perder a dignidade jamais (nem – ainda bem – o humor). Buarque, como alguns outros da turma, fez com brilho duas transições decisivas: da provinciana Belém do Pará para a metropolitana São Paulo; e de um jornalismo em sentido muito restrito para uma forma de jornalismo que, sendo sempre jornalismo, foi muito além dos parâmetros sob os quais essa geração se iniciou na profissão.

O adjetivo acompanhante desse tipo de jornalismo varia, conforme quem o define: jornalismo cultural, novo jornalismo, jornalismo investigativo, jornalismo científico e outros mais e quetais. Acho que todos os que o praticam se satisfariam em chamá-lo simplesmente de jornalismo. Conscientes, porém, de que fazer jornalismo não é simples nem fácil, embora pareça exatamente isso. Talvez porque o jeito e engenho de fazê-lo possui um forte componente de vocação, de amor e de paixão.

Não deixa de ser paradoxal que o envolvimento desses elementos subjetivos não contamine e muito menos prejudique a objetividade, o troféu maior perseguido pelos que praticam esse gênero de atividade, quando – e se – ela é realmente um exercício intelectual. Buarque e geração recebem como maná as declarações dos que os consideram operários das letras, sem a comiseração poética do coleguinha Vinícius de Moraes. O texto sai azeitado pela paixão, o amor, a vocação. Todos esses sentimentos, contudo, recebem a voz união da objetividade.

Nem Buarque nem seus companheiros de viagem perdem tempo com elucubrações aristotélicas sobre a expressão. Resolve-se o problema como Gringo com seu revólver mágico: objetividade é fato; fato é a ossatura dos acontecimentos humanos, a pauta de um jornalista, demasiadamente humanos, demasiadamente complexos. Podemos nos tornar brilhantes em devaneios filosóficos à margem da tessitura dos fatos, em narrativas sutis e descrições primorosas. Mas isso é o glacê do que interessa: a espinha factual (e dorsal).

Elementar, não? Não. Quantas vezes esse jornalista descobre, ao final de uma viagem como enviado especial da publicação que o emprega, ao arrumar as anotações feitas, que lhe faltou um fato vital. Nem sempre é um número, uma declaração. Pode ser um detalhe. Mas o gigante não se conhece pelo dedo e tudo morre pela falta do detalhe? A longa matéria está maravilhosa, mas não fecha. Ou melhor: pode ser fechada, mas no tapa. Pode agradar a todos os leitores, menos ao jornalista que a escreveu – e mesmo assim esse texto pode lhe dar a glória exterior; não a sua, interna, íntima. Ao vencedor, as batatas.

Monitorar os fatos relevantes, os que a imprensa tem que divulgar no dia a dia (não depois, quando der, porque a opinião pública tem que alimentar a sua agenda para poder fazer história no cotidiano), e seguir-lhe as pistas como um detetive incansável e fatal, implacável e certeiro. Sabe-se muito bem que essa arte resulta de muitos anos de um trabalho constante e cumulativo.

Digo tudo isto porque inegavelmente estamos diante de um livro de jornalismo escrito por jornalista. Mas que livro! E digo isto incorporando o preconceito acadêmico: não pode haver um grande livro escrito por jornalista. Jornalismo é impressionismo, empirismo, “achismo”. Não é ciência. Não merece ser referido por verdadeiros cientistas. Tem que ser expurgado das bibliografias acadêmicas.

De fato, quando jornalistas como Buarque começaram, as redações eram dominadas por um tipo de profissional, frequentemente brilhante e sedutor, que aplicava todas as suas faculdades na criação de textos de impacto, com estilo, em linguagem fluente, fosforescente, até antológicos, inesquecíveis. Os fatos, os dados e as informações eram rigorosamente detalhes. Havia renúncia tácita à exatidão e à fidelidade se elas prejudicavam a composição da história, vendida ao público com embrulho de luxo. O jornalismo ainda era literário. Como literatura, conquistava momentos sublimes. Como jornalismo, nem tanto. São lindos na cercadura de um jornal arquivado em qualquer centro de memória, a poeira do tempo.

O rigor desses jornalistas que agora gravitam pelos 60 anos consistiu em se apropriar de métodos (ou criá-los) que lhes permitiam chegar aos fatos. Nada de mais ou menos ou aproximadamente: a exatidão, o fato descarnado. Depois, quem sabe, conforme as aptidões e competências individuais, o glacê era magnífico. Jornalismo passou a ser fonte de consulta e jornalistas, um número crescente dos quais chegou às universidades, passaram a escrever livros como este.

Com ele, Sérgio Buarque acerta as contas com a esfinge da Cabanagem, um tema que há décadas está engasgado na garganta da compreensão de gerações de amazônicas e, felizmente, nos últimos tempos, com os brasileiros. Meticuloso, paciente e amoroso como sempre, Buarque sonda os fatos, penetra até o mais íntimo das verdades estabelecidas para submetê-las ao questionamento maiêutico.

Sua dialética não é apenas para despojar as informações da sua roupagem, muitas vezes mambembe, falsa, grandiloquente e oca. Ele checa o que já parecia insuscetível a qualquer dúvida e nessa verificação nos aponta o erro consolidado, o mito e, de acordo com seu entendimento, a novidade resultante de uma nova forma de ver e abordar.

É enganosa a forma que adotou para se expressar sobre esse incrível acontecimento histórico do Grão-Pará, a última – e maior – parcela do território nacional a aderir a este enigmático Brasil. Buarque formulou teses. Mesmo que essa escolha implique certas repetições na narrativa, ela é honesta e correta. Ao final de uma exaustiva pesquisa em todas as fontes disponíveis, o grande mérito do autor deste livro é enquadrar suas conclusões na formulação de teses. Não teses arbitrárias e soltas, mas sedimentadas em documentos de época e nas reconstruções e interpretações feitas depois do fato.

Sérgio Buarque de Gusmão rasga o manto diáfano das fantasias em torno da Cabanagem e reenquadra a suíte da história com seus sólidos enunciados interpretativos. Um trabalho meticuloso, árduo e rigoroso expurga a craca incrustada em livros e mais livros que se foram acumulando na bibliografia cabana, uns repetindo os outros em seus acertos e erros (estes, númerosos e graves). Como bom repórter, Buarque foi checar cada afirmativa e, uma vez desfeitos os mitos, retornou à tradição com as pérolas recuperadas através do seu mergulho nos documentos, submetidos a testes de consistência, à dúvida seminal.

A Cabanagem não teve um ideólogo nem realmente um programa de governo. Nenhum dos seus heróis foi indispensável. Não há, aliás, um cavaleiro sem jaça e sem mácula. A luta política é rasteira. Quanto menos ideias a amparam, mais violenta ela se torna – tanto nos atos quanto nas palavras. Mas será que realmente os números de mortos, de 30 mil a 40 mil, representando quase 30% da população do Grão-Pará, merecem fé? Ou a contagem foi inflacionada pelo ardor da patriotada regional? E quem, num momento, podia ser visto como revolucionário, republicano ou antiescravocrata, visto em outra situação contradiz essas definições. O que podia ser grandeza vira coisa rasteira.

Buarque refez a base sobre a qual a partir de agora devem continuar os esforços para reconstituir, entender e interpretar a Cabanagem. Seu livro provocativo e arguto não pode ser ignorado pelos que vierem a seguir, interessados no tema. Ainda faltam argumentos e provas para muitas perguntas e diversas suposições. Mas, ao contrário do que facilmente se proclama, o que não faltam são documentos. O que falta mesmo é disposição e método para enfrentá-los, como Buarque fez, limitado por um empreendimento individual de puro devotamento intelectual.

É bem sugestivo que a melhor definição sobre a Cabanagem tenha sido dada por um historiador alemão que nunca veio ao Brasil. Heinrich Handelmann cometeu muitos erros factuais no seu trabalho, que Buarque aponta, por seu método indireto, mas acertou em cheio na intuição profissional: foi a revolta dos que não têm contra os que têm. Uma autêntica luta entre opostos – de classe, de raça e de condição humana.

Quando cessaram as muitas diferenças pessoais, políticas e, com mais raridade, ideológicas, o que sobrou da Cabanagem foi o ódio acumulado e a desesperança dos que sempre foram explorados por aqueles que sempre os exploraram. Já sem líderes, heróis ou personagens diferenciadas, o que se seguiu foi brutalidade, selvageria, sangue e um grito de indignação e fúria. Foi quando o morticínio se tornou maior e muitos morreram, às centenas, no brigue-presídio, nos hospitais, no meio da rua e perdidos pela selva.

A “pacificação” foi pior do que na repressão aos insurgentes. Foi assim e continua a ser assim até hoje nas relações desequilibradas entre a Amazônia dominada e o Brasil (e mais além) que a domina. Por isso, a Cabanagem continua a ser um episódio marginal e secundário na historiografia nacional, muito falada e pouco compreendida, como a própria Amazônia dos nossos dias.

 

 

Texto do autor

 

Sérgio Buarque de Gusmão pertence a uma geração de que a Cabanagem foi sequestrada. Nos estudos que fez no Pará, nem no Ginásio Industrial Oliveira Brito, em Capanema, nem no curso Clássico do Colégio Estadual Paes de Carvalho, ouviu falar da grande insurreição regional da década de 1830. A cabanagem fora varrida da História.

Havia em Belém uma praça em homenagem a um precursor da Cabanagem, o advogado Filipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, personagem principal nos acontecimentos em torno da independência do Brasil (que se desligou do Pará bem antes da eclosão da revolta, em 1835), mas não havia um só logradouro ou monumento público a lembrar os cabanos – ao contrário, só existia, como ainda existe, a Rua Treze de Maio, a celebrar a data do desembarque do general que esmagou a insurreição, Francisco de Andreia, também homenageado com um monumento no Largo de Santo Antônio.

A exceção era um retrato de Eduardo Angelim pendurado desde 1936 no Instituto Histórico e Geográfico. Ainda circulava um livreto escolar de Dionísio João Hage, História do Pará (Editora do Brasil, 1962), para o “terceiro ano primário”, baseado em obras fora de circulação, como as de Jorge Hurley. O jornalista Carlos Roque, que iria ser o reanimador do interesse pela Cabanagem, começando a reabilitá-la em 1967 na sua Enciclopédia da Amazônia. A obra-catedral, os Motins Políticos de Domingos Antônio Raiol, barão de Guajará, publicada em cinco volumes entre 1865 e 1890, só seria reeditada em 1970 (em três volumes mal ordenados), para continuar a ser, como ainda é, o melhor trabalho sobre a insurreição.

Desde a reedição dos Motins, uma estante de livros tratou da insurreição do Pará. Embora a maioria dos autores beba na caudalosa fonte de Raiol, escrevem com a tinta da ingratidão. Fazem reparos ideológicos à obra do barão conservador e crítico severo da insurreição. Posto em ponta ideológica inversa, tais reparos desqualificariam as obras que canonizam os cabanos – com a agravante metodológica de que usam o material coletado por Raiol.

A artimanha já foi identificada por Lúcio Flávio Pinto, um dos maiores conhecedores do assunto, a quem o autor deve as primeiras menções judiciosas da Cabanagem, e no lugar mais apropriado: o Arquivo Público da Rua Campos Sales onde ele e Lenil, sua mulher, pesquisavam a insurreição. Anos depois, insatisfeito com a bibliografia, Lúcio apontou “o sociologismo reducionista dessas obras, que aflige também a geografia, bitolada pela geopolítica de claro viés ideológico, que tudo explica com pouca demonstração factual e grande vazio informativo”, diz ele, acrescentando: “Simpáticos e altissonantes, sensíveis à participação dos humilhados e ofendidos, mas sem a densidade da obra máxima do barão.” 1

À historicidade do historiador não se pode cobrar isenção, tampouco a omissão de seus pontos de vista. Mas o leitor tem o direito de recusar a substituição do fato pela interpretação e, no caso da Cabanagem, distorção de episódios de que a única e sumária fonte é Raiol. Em Cabanagem – A Revolução Popular da Amazônia (Cejup, 1986), à parte o esforço de atualização metodológica, Pasquale Di Paulo usa exaustivamente o material de Raiol, muitas vezes, como tem sido regra, sem citá-lo ao longo de páginas, como se a pesquisa fosse sua. Embora reconhecendo em rodapé “o imenso valor da historiográfica de Raiol”, acusa-o de “leviandade” e distorções a que seu livro não está imune em numerosas tessituras ficcionais derivadas de um erro fatal: dissociar os acontecimentos de uma época, trazendo-as para a contemporaneidade sem a relativização devida ao passar do tempo.

A ficção chegou ao auge em Décio Freitas com A Miserável Revolução das Classes Infames (Record, 2005) em que o historiador gaúcho simplesmente inventou uma personagem, o revolucionário francês Jean-Jacques Berthier, transplantando-o do exílio na Guiana ao Grão-Pará, para testemunhar a Cabanagem e escrever cartas imaginárias exclusivas para o livro de Freitas. Ao contrário dos fabuladores, Raiol teve a ventura dos sonhos de um historiador: como Heródoto, o Pai da História, que inaugurou a prática, entrevistou protagonistas dos acontecimentos que narrava: Eduardo Angelim, Francisco Vinagre, Sousa Franco e numerosas “testemunhas oculares” arroladas nos Motins Políticos. O importante na obra deste grande historiador do Império não é a interpretação preconcebida, mas a reconstituição dos episódios a par da opulenta documentação que reuniu e legou à posteridade como ata do fato histórico.

A memória da Cabanagem é uma dádiva de Raiol.

Além de perscrutar a bibliografia disponível, o autor obteve documentos na Biblioteca e no Arquivo nacionais e no Serviço de Documentação da Marinha, no Rio de Janeiro, no Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados e no Projeto Resgate, que reúne na internet documentação do Brasil colonial e imperial. No Arquivo Público do Estado do Pará pôde cotejar com as cópias ali guardadas transcrições de documentos oficiais já publicadas em livros, sobretudo nos de Domingos Raiol, Palma Muniz e Jorge Hurley.

Algumas fontes históricas aqui citadas não são inéditas, mas a releitura desvendou novidades, iluminou dados, senão episódios fartamente reproduzidos, cuja importância, e sobretudo conexões no processo histórico, não foram percebidas pelos que os transcreveram primeiro. Os documentos encerram mistérios. Nem sempre se esgotam, isto é, não se mostram inteiramente, na primeira visada ou interpretação; ao contrário, repousam na poeira dos arquivos ou no amarelecimento dos microfilmes à espera do cotejo de quem os relê e estuda com novas ferramentas de entendimentos e conhecimentos indisponíveis na época em que foram gerados.

O que um analista obscurece, outro clareia. Onde dois viram uma ninharia, um terceiro enxerga um tesouro. O que foi reduzido a pouco em uma leitura isolada agiganta-se no entrelaço do conjunto. O reexame de uma transcrição parcial e seletiva pode desfazer uma intervenção na narrativa dos acontecimentos, em geral feita para melhor sustentação de uma tese ou suporte à interpretação. Se a História é uma ciência, distingue-se de outras, sobretudo das Exatas, em que o resultado da pesquisa, refeita por outro cientista em idênticas condições, deve ser rigorosamente exato ao original.

Convém ponderar que História (como o Jornalismo, o ofício do autor) depende do fato. A interpretação, ainda que oxigenada por teorias e métodos mais elucidativos, é escrava do fato. Daí porque, tanto no Jornalismo como na História, o fato tem de ser autêntico e robusto, para legitimar a interpretação e autorizar a conclusão. A interpretação não se pode basear em elementos impertinentes, imaginados pelo historiador. Quem é do ramo, como Roger Chartier, adverte: Numa época em que nossa relação com o passado está ameaçada pela forte tentação de criar histórias imaginadas ou imaginárias, é fundamental e urgente a reflexão sobre as condições que permitem sustentar um discurso histórico como representação e explicação adequadas da realidade que foi (A História ou a Leitura do Tempo, Autêntica, 2009).

Há de se conservar a ambivalência indiciária do método analítico, ou seja, um equilíbrio entre fato e interpretação. Por isso não se adota aqui o repúdio à velha historiografia nutrida de nomes, datas e episódios, embora, ao contrário do muito que se diz, interpretativa. Nem se cai no canto da sereia metodológica dos que utilizam categorias baseadas na determinação com a obsessão de inserir qualquer sucesso histórico em um  modo de produção ou interesse de classe.

Tais considerações ilustram as contestações e reparos que as teses aqui apresentadas opõem a fatos ou e/ou conjuntos de fatos inscritos na narrativa da Cabanagem como verdades acabadas. Verifica-se que interpretações, ilações, suposições lastrearam conclusões sem fatos que as autorizassem. Outras foram baseadas em dados distorcidos e até falsificados. O próprio autor, em raro artigo sobre a Cabanagem, publicado na ligeireza da internet, embarcou no trem fantasma das incorreções impenitentes.2

O rol de impropriedades repisadas e cristalizadas na narrativa da Cabanagem começa pelo nome, pois a designação cabanos não tem filiação etimológica à moradia dos insurretos, e passa pela trajetória dos protagonistas: o cônego Batista Campos não foi “ideólogo” da insurreição nem o tribuno popular que figura em seu panegírico, o renegado presidente Félix Clemente Malcher não foi um anticabano e seu sucessor Francisco Vinagre não foi um quadro heroico. Ao contrário da fantasia construída como tradição, a Cabanagem teve sim um programa, o das lideranças, executado a ferro e fogo. Já o número de mortos, esticado de 30.000 a 40.000 pessoas, é puro exercício de arte especulativa, ainda que praticada por tantos autores, alguns deles levados na conta de sérios (uns raros sendo, de fato, sérios, mas não perfeitos).

A pesquisa documental e o cotejo de obras conduziram a resultados antagônicos ao que virou senso comum. Nessa trajetória, o sentido adotado de tese é mais de antítese do que uma proposição teórica preliminar. Ensaio talvez fosse mais apropriado, pois, se os seis pontos temáticos abordados poderiam ser bordados em poucas páginas, estenderam-se em  longa  linha narrativa para costurar um manto historiográfico talhado em revisões factuais. Para que cada tese-capítulo tivesse autonomia relativa, muitos episódios foram mencionados e contextualizados mais de uma vez. A fórmula permitiu ao autor recontar e reinterpretar processos importantes da insurreição, seus antecedentes e consequências, para oferecer uma outra história do que foi – e do que não foi – a insurreição que galvanizou o Grão-Pará na década de 1830.

São Paulo, 2014, ano do centenário do estadista precoce Eduardo Angelim

 

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1 – Jornal Pessoal, n.º 523, 2ª quinzena de outubro de 2012, p. 11.

2 – Nos Desvãos da Cabanagem, disponível em www.contracorrente.org/indice/nos-desvaos-da-cabanagem.html