Não foi uma revolução

“A Cabanagem foi o único dos movimentos insurrecionais que alcançou o poder sem o recurso ao republicanismo ou ao separatismo”, diz Manoel Maurício de Albuquerque neste trecho, extraído da 2ª edição de Pequena História da Formação Social Brasileira (Edições Graal, 1981, 728 páginas). Esse texto é tudo que ele reservou para a insurreição que irrompeu em Belém, em 1835, mas a observação é pertinente e constitui a contribuição original que ele deu à compreensão desse acontecimento. É a conclusão de uma análise comparativa rigorosa entre todas as várias revoltas que marcaram a transição do primeiro para o segundo império no Brasil, com as regências pelo meio.

A formulação de Manoel Maurício traduz a sua conclusão de que faltou conteúdo ideológico e político que daria à cabanagem um sentido revolucionário. Ela foi a explosão de uma revolta dos excluídos do sistema dominante e dos explorados por ele que, no auge, se transformaria em um ajuste de contas de negros, índios e caboclos contra os brancos, de nacionais contra reinóis (portugueses ou mesmo brasileiros) e dos que nada tinham contra os que dominavam a economia local. Mas os cabanos não tinham qualquer programa de governo nem ideias a aplicar depois da tomada do poder.

O historiador brasileiro cita uma frase, já tornada célebre, do alemão Heinrich Handelmann, que “apreendeu o sentido mais profundo do movimento”, ao declarar que a cabanagem foi “uma guerra de índios contra os brancos, dos destituídos de bens contra os que possuíam bens”.

É de certa forma perturbadora a circunstância de que Handelmann fez suas análises sobre a cabanagem sem ter vindo uma vez sequer ao Brasil. Escreveu sua história quando tinha 33 anos, apenas 20 anos depois do fim da rebelião, em 1860, somente em alemão. A tradução para o português só foi publicada em 1931, por iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Handelmann conseguiu tirar maior proveito da documentação original do que a grande maioria dos historiadores nacionais, talvez pela acuidade da pesquisa nas fontes primárias quando feita por autênticos historiadores. Essa capacidade permite uma visão mais profunda mesmo à falta de matéria prima historiográfica em volume adequado, do que a cabanagem se ressente até hoje.

Segue-se o texto de Manoel Maurício de Albuquerque:

Este movimento insurrecional localizou-se no Grão Pará, designação que também compreendia o atual Amazonas. A Independência não modificara a estrutura econômica nem as relações de poder no Extremo Norte. O elemento português continuou dominante, quer no setor agroexportador, quer no controle do comércio urbano. A maneira como se efetivara a incorporação da província ao império não satisfizera os que se opunham aos representantes da antiga Metrópole aos níveis econômico e político. A abdicação de D. Pedro abriu um período de lutas em que os exaltados ou filantrópicos entraram em conflito com os restauradores e moderados. A morte do primeiro imperador levou os caramurus a engrossarem as fileiras dos moderados para se manterem no poder. Além do conflito entre o poder central e a oposição provincial, existe também na Cabanagem uma luta entre a Comarca do rio Negro e o Grão Pará, desejando a primeira libertar-se da tutela de Belém, que concentrava a dominação econômica e política do Vale do Amazonas.

A produção regional, baseada na grande propriedade agro-manufatureira e no extrativismo das “drogas do sertão”, entrara em declício a partir das reformas executadas sob a administração pombalina. Essa decadência agravara a exploração locais, indígenas ou caboclos, embora a escravidão do índio fosse proibida em 1755. Por isso, essas populações marginalizadas intervêm na luta com práticas que escapam à direção dos chefes cabanos mas que expressam tentativas para encontrar soluções para os seus problemas com certa autonomia. Daí a violência antilusitana e, ocasionalmente, antibranca de que se revestiram certos episódios da luta.

Em sua História do Brasil, Henrich Handelmann apreendeu o sentido mais profundo do movimento: “Todavia, essa feição primitiva apagou-se, quando os chefes da revolta chamaram às armas as populações índias meio selvagens, os tapuias (nomes locais dos caboclos) e a sublevação apresentou-se como uma guerra de índios contra os brancos, dos destituídos de bens contra os que possuíam bens”.

A insurreição iniciou-se em Belém com o assassínio do presidente da província e do Comandante das Armas. Tomando o poder, os cabanos colocaram na chefia do governo Félix Clemente Malcher, que entrou em conflito com outro dirigente rebelde, Francisco Pedro Vinagre. Assassinado Malcher, Vinagre ocupou a presidência e o comando das armas. Um novo presidente nomeado pela Regência Trina Permanente não conseguiu dominar a situação. Vinagre foi preso, mas a luta prosseguiu, inclusive com uma nova ocupação de Belém pelo cabano Eduardo Francisco Nogueira Angelim.

Em 1836, Feijó nomeou Presidente da Província e Comandante das Armas o futuro Barão de Caçapava, Soares de Andréa. Angelim foi vencido e preso, mas a luta prosseguiu ainda até 1840, quando ocorreu a derrota do movimento, sob a presidência de Bernardo de Souza Franco, depois Visconde de Souza Franco. A Cabanagem foi o único dos movimentos insurrecionais que alcançou o poder sem o recurso ao republicanismo ou ao separatismo.

A participação popular, que foi tão importante no momento, não chegou a controlá-lo a ponto de o transformar numa proposta revolucionária. A luta contestatória pôde ser, assim, enfraquecida por recursos imediatistas, utilizados pela repressão, como ocorreu quando Soares Andréia buscou ampliar o exíguo mercado de trabalho, entendendo corretamente que esta solução era muito mais econômica e objetiva do que a violência. Por outro lado, os setores proprietários e comerciais recalcavam suas divergências diante da possibilidade da Cabanagem alcançar uma dimensão incontrolável.

BIBLIOGRAFIA

Destinado a ser um manual de história sob uma visão crítica, com fundamento na teoria marxista, o livro de Manoel Maurício oferece aos seus leitores uma bibliografia sumária comentada. Sobre a conjuntura que antecedeu a eclosão da cabanagem, como não podia deixar de ser, ele considera que ainda é o melhor trabalho o de Domingos Antonio Raiol, o barão de Guajará, Motins Políticos, cuja edição mais recente, a segunda, publicada pela Universidade Federal do Pará em 1970, clama por uma reedição.

Suas indicações:

“A objetividade crítica de Gottfried Heinrich Handelmann, História do Brasil, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1931, no valorizar os determinantes sociais mais profundos da Cabanagem, não foi ainda aprofundada. Nélson Werneck Sodré, Caio Prado Jr. e Arthur César Ferreira Reis, embora aceitem, a partir de pressupostos metodológicos diferentes, a tese de Handelmann, não chegaram a dedicar nenhuma obra ao movimento que conflagrou o Vale Amazônico. A mesma insuficiência bibliográfica prejudica o conhecimento da Balaiada, outra manifestação de base popular que se desenvolveu no Maranhão.

Ernesto Cruz se ateve principalmente aos aspectos políticos em Nos Bastidores da Cabanagem, Belém, 1942; há também bons subsídios em Jorge Hurley, A Cabanagem, Belém, 1936; Basílio de Magalhães, Estudos da História do Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940”.